Em conferência de 1965, por ocasião de um congresso sobre o cinema latino-americano em Gênova, Itália, Glauber Rocha lançava as bases de sua tese A estética da fome. Como expoente do movimento Cinema Novo, o cineasta defendia a singularidade do processo de afirmação nacional, com a transformação de sua maior mazela - a fome - em potência artística criativa do Terceiro Mundo, único fenômeno capaz de assombrar a Europa civilizada. Em seu manifesto, a busca de elementos próprios ao país, que lhe dariam a capacidade de expressar com originalidade esta força, poderia encontrar paralelo na literatura dos anos de 1930, em especial no romance social nordestino, com as obras de Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz e José Lins do Rego. O cinema da década de 1960 encontrava a fonte de inspiração na literatura regional da década de 1930. Da escrita à imagem, da pena à câmera na mão, cineastas se identificavam com escritores no sentido do engajamento do artista com o seu meio.
Nelson Pereira dos Santos foi um dos pioneiros desse processo cinematográfico de reivindicação de uma continuidade com escritores regionalistas e de transposição de suas obras para as telas, o que sucedeu com Vidas secas, Tenda dos milagres e Memórias do cárcere. Nos últimos anos, após a consolidação de uma extensa filmografia no campo ficcional, o diretor tem ampliado sua área de atuação, com a opção pelo gênero do documentário e com a realização de um novo diálogo intelectual com as letras brasileiras da década de 1930. No limiar do século XXI, Nelson Pereira dos Santos adapta para o cinema, em forma didática, a obra de clássicos das Ciências Sociais no Brasil, como Casa-Grande & Senzala (1933), de Gilberto Freyre, e Raízes do Brasil (1936), de Sérgio Buarque de Hollanda.
Tal postura parece estar em consonância com o espírito de um egresso do Cinema Novo, que havia nascido como uma insurgência contra o modelo do filme de entretenimento norte-americano e de suas variantes sub-hollywoodianas na América Latina. A nova vanguarda artística filiava-se à tradição nacional a fim de dar um cunho pedagógico à arte cinematográfica. Isto fez com que Humberto Mauro, realizador de centenas de documentários no Instituto Nacional de Cinema Educativo (Ince), tenha sido aclamado como uma dos principais referências do movimento. O interesse pela figura de Gilberto Freyre já vinha desde Joaquim Pedro de Andrade, com seu primeiro curta-metragem no final da década de 1950, O mestre de Apipucos, e com seu projeto, não concluído, de registrar em forma de ficção Casa-Grande & Senzala. Glauber Rocha filmou no início da década de 1970 o longa-metragem História do Brasil, com o estrito fim informativo, após uma síntese de vários autores do pensamento social brasileiro.
Com isso, não parece haver na atualidade uma mudança de rumos no cinema de Nelson Pereira dos Santos. A aproximação do diretor à vida e à obra de intérpretes brasileiros da década de 1930 revela o desejo de um aprofundamento do conhecimento científico áudio-visual e de uma melhor compreensão do país na contemporaneidade. Divididos respectivamente em quatro e em dois capítulos, Casa-Grande & Senzala (2001) e Raízes do Brasil (2004), de Nelson Pereira dos Santos, procuram apresentar para o grande público a importância do esforço de entendimento da realidade brasileira levado a termo por alguns de seus mais instigantes pensadores.
O depoimento de Antônio Cândido ao documentário parece ser o gancho que propicia a passagem da discussão do filme ao livro: Sérgio Buarque de Hollanda falava na década de 1930 de um Brasil que se esvaía, de um país em vias de extinção. O novo Brasil, ainda indefinido no plano social, político e econômico, era formado pelos fluxos de imigrantes que desde o final do século XIX aportavam da Europa e da Ásia. Embora não desenvolvido pelo historiador, este dado era salientado por Antônio Cândido como um indício da sintonia de Raízes do Brasil com os grandes debates de sua época.
O autor não tratava, pois, do passado; ao contrário, seu foco incidia muito mais sobre o presente turbulento. As indecisões da conjuntura política faziam de Raízes do Brasil um ensaio aberto e, em algumas passagens, enigmático. Sob o impacto da Revolução de 30 e às vésperas da implementação do Estado Novo, a obra vai ser situada por Antonio Cândido dentro de um processo que só poderia ser percebido com maior nitidez após 1945, quando sua geração testemunha a consolidação do Brasil no cenário internacional como uma nação moderna, urbana e industrial, o que teria sido legado, em certa medida de maneira paradoxal, pela ditadura Vargas. Talvez em decorrência disto, Sérgio Buarque de Hollanda asseverasse que a democracia no Brasil houvesse sido até então um "lamentável mal-entendido".
O primeiro esboço de redação do livro data de 1930, quando Sérgio Buarque de Hollanda residia na Alemanha. Enviado àquele país um ano antes como correspondente dos Diários Associados, o jovem Sérgio iria aproveitar sua temporada alemã com entrevistas a escritores como Thomas Mann e com a freqüência às aulas na Universidade de Berlim. Em meio à euforia boêmia dos últimos dias da República de Weimar, a leitura de autores ligados ao círculo de Stefan George, como Ernest Kantorowicz, o levaria ao conhecimento da obra de Max Weber. Este descortinaria um novo horizonte sociológico ao pensamento do autor, que regressaria da Europa com um caderno de anotações para o livro que pretendia intitular Teoria da América. Em 1935, publicaria em uma revista do Rio de Janeiro uma versão sumária de tais escritos, chamada Corpo e Alma do Brasil - ensaio de psicologia social, que iria adquir no ano seguinte a forma definitiva, com a publicação de Raízes do Brasil. A viagem ao exterior seria um fator decisivo tanto no amadurecimento intelectual do autor, quanto na formulação das questões presentes na obra de 1936. O distanciamento de seu país significou a obtenção de uma nova perspectiva dele. O Brasil passava a ser visto de fora, em seu conjunto, como um todo.
O argumento central do livro é o de que o Brasil atravessava desde o século XIX uma prolongada crise de transição de uma ordem tradicional a uma ordem moderna. Os efeitos desta crise ainda eram sentidos nos anos em que o autor redigia seu ensaio. Tratava-se de uma revolução lenta, com a superação de um modelo agrário, rural e patriarcal, por um outro modelo - industrial, urbano e democrático. A dificuldade de ultrapassagem para esta última fase se originava de uma série de entraves que a estrutura colonial havia legado e que se manifestava desde então no modo de ser do brasileiro. Premido entre os novos imperativos da civilização ocidental e os condicionantes arcaicos da sua formação histórica, o Brasil assistia a um impasse na definição de seu destino.
O desterro brasileiro proviria do descompasso entre esses dois fatores. Tal incongruência resultava na incapacidade de uma coesão social sólida, assentada no Estado e no bem público, e o predomínio do ambíguo círculo de influências vincadas na família e no livre-arbítrio do indivíduo. O país oscilava assim em um periclitante jogo de vícios e virtudes, intercambiáveis entre si, conforme a circunstância. Em vez da proposição de fórmulas pré-estabelecidas para a resolução deste quadro, Sérgio Buarque de Hollanda defendia uma revisão libertadora de nosso passado que ensejasse o enfrentamento da realidade nacional. Sem o apego nostálgico ao que passou e sem a cópia de modelos estrangeiros, seria possível vislumbrar com mais clarividência o próprio sentido da nação como entidade coletiva.
O autor iniciava seu estudo com o exame de nossas origens históricas mais longínquas, que remontavam à peculiaridade da civilização portuguesa na Península Ibérica e desta no ambiente europeu. A mescla de influências que Espanha e Portugal recebiam tanto da Europa quanto da África do Norte, em especial, com a presença de árabes na Ibéria durante vários séculos, resultava em um certo distanciamento cultural destes dois países, pioneiros na expansão ultramarina, frente aos países protestantes da Europa setentrional. O contraste podia ser percebido no tipo de colonização do Novo Mundo, feita por castelhanos e lusitanos, de um lado, e por anglo-saxões, de outro. Sérgio Buarque de Hollanda procurava acentuar algumas especificidades da burguesia em Portugal que, em vez de se constituir em oposição à aristocracia, assimilava muitos de seus valores. A fidalguia, o culto à personalidade e a aversão ao trabalho eram alguns dos traços oriundos da mentalidade aristocrática e que acabavam por se ver refletidos no estabelecimento das fronteiras coloniais em terras americanas.
A par da identificação das diversas matrizes históricas de colonização da América, Sérgio Buarque de Hollanda erigia uma de suas tipologias que, com base no cotejo entre as nações, contribuíam para uma melhor percepção das características do país: aventura & trabalho. Ao contrário do que preconizava a moral puritana na vida moderna, com o primado da rotina, do esforço metódico e da disciplina ascética, o universo colonial português havia sido o reino da aventura. Nele, o colonizador não pretendia a aquisição da estabilidade, mas a conquista de uma riqueza auferida com o mínimo de dispêndio de energia. O espírito do colono não visava os meios necessários à configuração de uma ordem sistêmica, que lhe garantisse o provimento de compensações futuras; inclinava-se mais à satisfação imediata de seus primeiros fins. Talvez por isto o adventício tenha se valido menos da imposição de sua própria ordem econômica e mais da apropriação das técnicas nativas rudimentares, tal como elas se davam entre os ameríndios, seja no cultivo da terra, seja na incursão pelo interior.
Esse traço da colonização portuguesa foi um elemento determinante para que as terras brasileiras não chegassem a configurar um sistema agrícola em sua acepção mais precisa. A ambiência rural parecia se orientar ao sabor das facilidades que o meio lhe oferecia, em detrimento de uma intervenção seriada do homem sobre a natureza, com vistas a um melhor colhimento de seus frutos, fato que assemelhava a plantação açucareira à exploração aurífera nas Minas Gerais durante o século XVIII. De acordo com o autor, o Brasil foi antes uma civilização de raízes rurais. Nela, cada engenho de açúcar era uma unidade auto-suficiente, a viver ao largo do raio de interferência das cidades. Sua influência mais presente se deu no seio da economia doméstica patriarcal, lugar de gestação para uma série de valores centrados no âmbito familiar, com destaque para a figura do senhor de engenho, uma espécie de tirano daquele mundo autárquico, que também nutria um grande repúdio por qualquer tipo de trabalho manual. Mesmo com o declínio do campo e a expansão das cidades, a mentalidade colonial da casa-grande teve seus desdobramentos na vida citadina. Com a propagação das profissões liberais, os filhos dos senhores de engenho perpetuavam nas cidades o menosprezo pelo trabalho corporal e pelo esforço físico.
O pouco apreço do português à rotina laboriosa levava Sérgio Buarque de Hollanda à formulação de sua compreensão do surgimento das cidades coloniais brasileiras. A demonstração de seu pensamento utilizaria agora uma nova dicotomia que ia prevalecer nos respectivos tipos de cidades portuguesas e espanholas: o semeador e o ladrilhador. Com base nos modelos urbanos da Antiguidade e da Renascença, o autor afirmava que as cidades no Brasil haviam nascido mais por obra do acaso do que por um empreendimento oriundo de uma atividade racional e planejada. Tendo de novo como parâmetro a relação entre o homem e a natureza, o autor frisava o traçado irregular das cidades brasileiras. Elas tratavam de se adequar à silhueta da paisagem local, o que evidenciava o caráter de plasticidade do português em seu processo de fixação topográfica. Já entre os espanhóis destacava-se a ligação entre o homem e a arte, de onde se extraíam as noções de harmonia e de simetria. Assim, enquanto o espanhol impingia à cidade o traçado retilíneo de sua geometria, o português deixava-se reger pelas sinuosidades de sua geografia curvilínea.
O crescimento à revelia das cidades brasileiras reforçava o argumento do autor segundo o qual preponderou entre os portugueses um procedimento pouco sistemático de ocupação do território. O desapego a leis abstratas e o tímido empenho na edificação das cidades eram indícios da têmpera daquele conquistador. Além disto, Sérgio Buarque de Hollanda identificava uma série de outras sobrevivências espirituais que se estendiam da vida colonial à vida urbana contemporânea. A cordialidade parecia ser a condensação de um conjunto de elementos que haviam se plasmado ao longo de séculos e que se manifestavam agora no caráter do brasileiro. O privilégio da emoção sobre a razão era um dos aspectos que saltava à vista na observação das relações sociais e políticas no Brasil. Os laços de afeto eram responsáveis pela diluição da oposição milenar entre a família e o Estado. Aqui, o prestígio pessoal se antepôs, na prática, ao princípio da isonomia e da cidadania. A indistinção conceitual entre o bem público e o bem particular estava na base de uma psicologia social do brasileiro, o que constituía grande empecilho para o estabelecimento da cooperação interna nacional.
O fenômeno do homem cordial não possuía apenas uma dimensão negativa. Ele comportava também a face viva de sua contribuição à civilização. Fruto de uma reação à polidez e ao ritualismo social imposto pelos padrões de civilidade européia, o brasileiro forjou uma nova maneira de relacionamento entre os homens ao procurar aproximá-los por meio da quebra de convenções. A minimização das distâncias visava abolir diversas formas de hierarquia entre os indivíduos, por meio do compartilhamento de valores de fundo emotivo, oriundos do coração. Esta característica estava presente de modo especial no domínio da vida cotidiana, seja na linguagem, seja nas práticas religiosas. O sufixo -inho, presente na fala corrente, era uma mostra da tendência para trazer ao nível da intimidade pessoas que poderiam estar separadas por classes sociais ou por escalas de poder. Quanto à religião, Sérgio Buarque de Hollanda observava de que maneira os rígidos cânones da liturgia católica se atenuavam em solo tropical. Graças a uma relação de menor reverência formal à sua divindade, o fiel tratava de expressar sua adoração a santos através de uma série de festividades. Nelas, a atração pela música e pela dança acabava por sobrepujar a solenidade dos cultos em si.
Certa benevolência do autor na descrição de alguns hábitos típicos da cultura popular não se repetia quando se tratava da elite, da intelectualidade e da classe dirigente nacional. Aí pareciam retornar aquelas persistências atávicas do universo colonial. A falta de afeição ao trabalho manual no meio urbano teve como corolário a idealização da figura do intelectual. Da aristocracia da terra passou-se à aristocracia do espírito. O homem letrado foi alçado a uma condição de transcendência que o distinguia em relação aos demais. Tal posição constituía uma estratégia de notabilidade e não um compromisso efetivo com o trabalho e com a sua aplicação à realidade. Isto ocasionou a ausência tanto de um saber especulativo voltado para a proposição de indagações abstratas, quanto de um saber técnico voltado para uma alteração substantiva do real. A importância atribuída aos títulos honoríficos era exemplar na caracterização de uma sociedade que adulava os bacharéis. Entre estes, seria rara a utilização dos ensinamentos recebidos na universidade no decorrer de sua vida pública.
Crítico do academicismo desde o início da década de 1920, quando se vinculou ao movimento modernista de São Paulo, Sérgio Buarque de Hollanda continuava a ver o culto às letras no Brasil como uma forma de manutenção de um saber de fachada, baseado na aparência e expresso mediante alguns usos recorrentes: a citação em língua estrangeira, o gosto pelas palavras difíceis e a eloqüência dos discursos pomposos. A importação de sistemas filosóficos e de ideologias políticas seria um outro componente comum de nossa intelligentsia que viria a sofrer críticas por parte do autor. Isto se dava menos pela busca de sua fonte de pensamento em outras latitudes e mais por sua incapacidade de sair do terreno da elucubração mental. A crença no poder das idéias pôde explicar também a voga do positivismo no Brasil, pois para o autor, em vez da implantação das doutrinas de Augusto Comte, merecia atenção o papel evasivo da realidade que tais teorias cumpriam entre os seguidores do filósofo francês.
A origem dessa subordinação a pensamentos estrangeiros estava presente desde o processo de independência das nações ibero-americanas, com a adoção dos ideais da Revolução Francesa. Era uma importação que ficava na superfície política, sem atingir o cerne da sociedade. Esta característica só veio a se repetir no curso da história e, no momento em que o autor escrevia, seu exemplo mais palpável era o liberalismo, cujo princípio de impessoalidade encontrava sérios obstáculos para sua aclimatação. A conseqüência de mais um desajuste era não só o aumento da cisão entre o Estado e a sociedade civil, como a emergência de um movimento que se verificava também em vários países da América Latina e que se personificava na figura antípoda do liberal: o caudilho. O personalismo na vida brasileira era ainda, para o autor, a perduração do ethos aristocrático. Nem o liberalismo, arremedo de civilização, nem o caudilhismo, caricatura da oligarquia, pareciam satisfazer o autor; tampouco o comunismo, com seu excessivo enquadramento em relação a Moscou, ou o integralismo, com seu desvario à Mussolini, configuravam para ele experiências viáveis no caso brasileiro. A democracia no Brasil só seria possível com a superação dialética de modelos antitéticos. Era mister, mais que uma ruptura, uma revolução vertical, a colocar o país de ponta-cabeça. Somente assim seria possível lograr um novo equilíbrio de forças que evitasse o abismo entre a política e a sociedade e que permitisse ao país trilhar um caminho próprio entre as nações civilizadas.
São essas, em linhas gerais, as idéias do autor contidas em Raízes do Brasil. A recapitulação das suas principais coordenadas parece ser motivada agora com o lançamento do filme homônimo de Nélson Pereira dos Santos (2004) e com a mais recente edição em livro (2000). A novidade de sua reedição é a de que ele integra a série organizada por Silviano Santiago, oportunamente denominada Intérpretes do Brasil, que compreende três volumes de obras clássicas do pensamento social brasileiro. Um aspecto da coletânea que se mantém em relação às demais edições do livro é a sua abertura com um estudo que vem a robustecer ainda mais a fortuna crítica do autor. A análise de Maria Odila Leite da Silva Dias contribui para a ênfase na condição de Sérgio Buarque de Hollanda como um adepto da história sempre atenta ao presente e às formas do devir. Captando os processos históricos sem esquemas rígidos, o autor soube discernir a trama de relações sociais, políticas e culturais em seu sentido dinâmico. Esta marca o identificaria nas décadas posteriores em seus demais estudos, que o colocariam no terreno específico da historiografia. Obra de estréia, Raízes do Brasil continha o viço das inquietações intelectuais que germinariam em Monções, Caminhos e fronteiras e Visão do paraíso.
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Bernardo Borges Buarque de Hollanda é doutorando em História Social da PUC/Rio de Janeiro.