Apesar de ainda não ser predominante em termos de números, a "mensagem espiritual" do "aleluia, aleluia e a luta continua com Crivella" é a que tem atraído pessoas com inúmeras frustrações para os "cultos materialistas dos neopentecostais". Numa sociedade "hedonista e consumista", cuja parcela significativa das pessoas vive para garantir a "sobrevivência material do cotidiano", não é de surpreender que a política seja exatamente o que é: atrasada, e que a religião, aos poucos, deturpe não só o cristianismo, como a realidade para manter tudo como está.
Diante desse cenário, o sociólogo Luiz Werneck Vianna, que da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro PUC-Rio observa a realidade política brasileira, faz um alerta: "É preciso, sim, uma revisão profunda na orientação dos que cultuam valores mais permanentes, mais humanos, mais universais. É preciso encontrar algum espaço". Nas eleições municipais deste ano, destaca, não vimos nada nesse sentido. Ao contrário, "a eleição foi a representação de um sentimento de inconformidade da população com tudo o que aí está".
Na entrevista a seguir, concedida por telefone à IHU On-Line, o sociólogo chama a atenção para o atraso da política brasileira, completamente alheia às urgências do país do ponto de vista social, ambiental e de saneamento. A superação do atraso político no país, adverte, virá somente se dermos um passo de cada vez e, nessa caminhada, sugere, "precisamos de uma jovem inteligência da qual se pode esperar alguma coisa nova, especialmente com origem nas universidades".
Confira a entrevista, feita por Patricia Fachin e João Vitor Santos
O que o resultado das eleições municipais deste ano revela sobre a política e a democracia de nossos tempos? As eleições foram um banho de saúde na política brasileira. Revelam um pouco da verdade excessivamente existente no nosso mundo político, o que também não é nada de espetacular. Num país conservador, com voto conservador, o DEM aparece como um partido forte, com outras credenciais para a disputa presidencial mais à frente, em 2022. A esquerda foi dividida, está sem programa. A eleição foi a representação de um sentimento de inconformidade da população com tudo o que aí está. Há uma esperança de que algo melhore com os candidatos de esquerda, mas eles não têm programa, não têm capacidade de articulação, não têm alianças.
No Rio de Janeiro, se juntarmos os três candidatos de esquerda, cria-se um segundo turno, dada a divisão entre PT, PDT e PSOL. Essa divisão levou ao segundo turno, de modo que há alguns presságios no ar: nada de espetacular, mas terra à vista. É possível seguir nesta direção em que estamos e chegarmos a um porto, passo a passo. Essa eleição foi mais um passo.
Ela também precisa ser vista no contexto das eleições americanas, que produz uma certa animação dos setores democráticos a partir do que se passa na potência hegemônica. A influência do governo Trump no mundo embaraçava as forças democráticas e impedia as possibilidades de avanço. A remoção [de Trump], que ocorrerá em breve, abre uma bela janela de oportunidades.
O que tende a mudar nas relações do governo brasileiro com o novo governo americano de Joe Biden?
Abre uma janela de oportunidades imensa. Uma coisa interessante a ver nessa eleição é que, apesar de o tema ambiental ter tido um papel muito importante nas eleições americanas e nas eleições europeias recentes, essa questão em particular não ocupou papel relevante na agenda dos candidatos brasileiros. Nenhum partido levantou essa bandeira, em que pese a situação da Amazônia e o que ocorre em matéria de saneamento básico.
Os partidos brasileiros ambientalistas se dissolveram, a própria Marina está num lugar remoto nessa política. A ausência da agenda ambiental nessas eleições é um dado importante. A esquerda precisa descobrir temas, se comportar de forma inovadora. A esquerda está completamente defasada.
Vamos ver se receberemos algum alento a partir de agora para ver se avança e melhora. Mas não há que se pensar numa esquerda exercendo um papel de protagonismo nas eleições.
Qual a sua análise quanto ao resultado das eleições nas principais capitais do Norte, Nordeste, Sudeste e Sul?
Nesse diapasão, no caso de Pernambuco e Pará - que também é relevante -, venceram os candidatos de centro e em geral de centro-direita, com grande apoio eleitoral, como é o caso de Salvador, na Bahia.
A pandemia de 2020 reforçou uma série de questões que estão em pauta na última década: a emergência climática, a concepção de uma outra lógica econômica, a necessidade de uma renda básica universal e um redimensionamento do poder e das ações estatais. Com base no resultado das eleições, como devem evoluir essas propostas?
Esses debates se fizeram presentes, mas sem muita potência. Seria fundamental que o tema da renda básica tivesse mais relevância nessa disputa, mas não teve. Esse tema não encontrou uma sustentação forte e não creio que tenha amadurecido alguma coisa nessa direção.
Quais são as saídas para as mazelas sociais que temos no Brasil, para além da política como a conhecemos?
A saída para a população brasileira é política, mas o problema é que a nossa política é muito atrasada, primitiva, rústica.
Houve um avanço em relação à última eleição, que foi dominada pelo atraso e pela grosseria, pela "arminha" e esses símbolos idiotas que prevaleceram naquela época e que agora foram banidos. Mas as questões fundamentais, como renda básica, questão ambiental, não foram discutidas em profundidade. Os portadores desses temas, quando apareceram, foram fracos, com baixa densidade eleitoral. Quem venceu essa eleição foi o DEM.
Há candidaturas de esquerda que ainda podem ter um desenlace melhor, como a Manuela [dÁvila], no Rio Grande do Sul. Mas a ver, tem que esperar. Não sei o que vai se passar.
Não há motivo para satisfação, mas, ao mesmo tempo, a satisfação tem que ser vista com olhos críticos: não se pode achar que agora Roma está diante de nós. Foi um passo importante, mas ainda pequeno. Falta muito. Faltam personalidades políticas relevantes, faltam partidos relevantes, faltam programas confiáveis, falta muita coisa. É muito atraso.
A solução americana adotou uma postura muito bem-feita no interior do partido democrático, com uma coalizão que, apesar das diferenças entre as correntes, levou à vitória, em condições muito difíceis. Foi uma vitória importante, uma das mais importantes dos últimos tempos. Mas eles tiveram personalidades políticas maduras, responsáveis, que souberam construir a frente que levou [Joe] Biden à vitória. Aqui, quem aparece com esse papel?
No Rio de Janeiro, três candidatos de esquerda disputaram a eleição. É claro que se abriu uma oportunidade ao Crivella, apesar de toda a rejeição da cidade a essa figura. O PSOL apareceu como um esboço de um partido de esquerda de novo tipo, mas qual é o programa do PSOL? Qual é a experiência do socialismo real, por exemplo? Tudo é muito precário. Mas agora avançou-se, deu-se um passo importante, porque mostra a necessidade de novos passos à frente.
Como vê a proposta de teóricos, como o francês Gaël Giraud, que sugerem uma conversão espiritual e política para realmente transformar as instituições sociais que precisam ser modificadas?
Se essa mudança está ocorrendo, não estou vendo. Vejo uma sociedade que ainda é hedonista, consumista, com a maioria da população empenhada na sobrevivência material do cotidiano. Não tem portador para uma visão profética, por ora.
Seria importante uma mudança espiritual nesse sentido?
Ah, seria. Claro que seria, mas aí veja: a Igreja Católica no Rio de Janeiro se deixou ultrapassar inteiramente por um culto materialista como o neopentecostalista. Ela se retirou da política e da Teologia da Libertação - deu um fim nisso - e deixou o campo aberto nas periferias para a penetração desses cultos hedonistas de economia da prosperidade e teologia da prosperidade. De modo que é preciso, sim, uma revisão profunda na orientação dos que cultuam valores mais permanentes, mais humanos, mais universais. É preciso encontrar algum espaço. Mas nessas eleições, qual candidato poderia ser identificado com uma mensagem desse tipo? Nenhum. É "aleluia, aleluia e a luta continua com Crivella". Essa é a mensagem espiritual que há por aqui.
O que a Igreja poderia fazer nesse sentido para contribuir a fim de alterar esse percurso?
A Igreja tinha instrumentos na Teologia da Libertação, mas ela a desarmou, expeliu seus quadros e abriu essa clareira para que esses cultos de fundo materialista preponderassem.
Como as universidades católicas podem contribuir para solucionar esta crise e o que elas podem oferecer à sociedade neste momento?
Isso depende das lideranças, das personalidades, dos intelectuais católicos. Eles têm que ocupar o espaço público e se aproximar outra vez da vida das periferias. As periferias foram abandonadas. Quando você vai a uma favela, vê Assembleia de Deus por toda parte. Você não vê mais Igrejas lá dentro. Havia? Sim, havia.
Há anos o senhor é um dos intelectuais que chamam a atenção para a crise de pensamento na sociedade. Como alterar esse curso?
Precisamos de uma jovem inteligência da qual se pode esperar alguma coisa nova, especialmente com origem nas universidades. O Instituto Humanitas Unisinos IHU é um exemplo disso, entre tantos outros lugares universitários que têm sido portadores de uma nova mensagem, mais humana. Este ainda é um processo muito embrionário, um novo despertar.
Essas eleições demonstram o começo de um novo estado de coisas. É a saída de um pesadelo que vai se dissipando aos poucos e ainda nos assombra. Precisamos de paciência e também de trabalho diário, cotidiano.
A sociologia brasileira pode contribuir de que forma nesse processo?
Ela tem produzido intervenções interessantes, especialmente a chamada jovem e nova sociologia brasileira. Ela está muito atenta ao tema da desigualdade, ao tema da vida nas comunidades periféricas; é um despertar interessante cujos frutos começam a aparecer. Inclusive com intelectuais saídos da própria periferia, como foi o caso da Marielle Franco. Ela era socióloga e saiu da PUC-Rio. A candidata do PSOL [Renata Souza] também é uma intelectual interessante. Da relação entre universidade e periferia estão começando a brotar frutos, com a formação de intelectuais saídos dos próprios setores marginalizados. Estes são capazes de ser portadores de novidades no que se refere a uma política social de novo tipo, mais avançada.
A minha universidade, a PUC-Rio, cumpre um papel muito interessante nessa direção, especialmente na aproximação com os jovens da periferia que ela acolhe por meio de bolsas de estudo para os seus cursos, formando jovens cientistas saídos das classes subalternas e que têm escalada na esfera pública. Marielle é um caso de evidência solar, mas há tantos outros. Mas é numa escala muito reduzida. A relação da universidade, por exemplo, com a favela da Maré é interessante. O candidato a vice-prefeito da Martha Rocha, do PDT [Anderson Quack], é uma liderança da Central Única das Favelas Cufa. É por aí que a banda tem que tocar. É preciso começar a trocar o ar. Vamos ver.
Como as Humanidades podem dialogar com as demais ciências nas universidades?
Essa é uma questão difícil. Ainda há muitas pontes a serem construídas nessa direção. Mas eu tenho a impressão de que isso tem melhorado. Olhando para a minha universidade, vejo que a relação tem melhorado. Mas ainda não tenho condições de falar com maior clareza sobre isso.
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Observador político 2020