No ato final do comunismo histórico, a partir de 1989, um breve e conhecido texto de Norberto Bobbio, "O reverso da utopia", conseguiu dar forma e sentido ao espantoso espetáculo que então se encenava. O mais radical dos sonhos polÃticos da história - dizia Bobbio - havia se transformado em distopia à moda do pesadelo imaginado por Orwell. Mesmo distantes dos grandes crimes do stalinismo, os regimes inspirados na revolução bolchevique, a URSS em primeiro lugar, arrastavam-se penosamente num quadro de ineficiência econômica, pasmaceira social e autoritarismo polÃtico, no qual se abria um fosso insuperável entre ideia e realidade, palavras e fatos, grandes ideais e realidades prosaicas da vida.
As populações submetidas sublevaram-se, em geral pacificamente, em torno das mais elementares - e insubstituÃveis - consignas democráticas, como a liberdade de pensamento ou de reunião. As tentativas de autorreforma, como a glasnost (a transparência) e a perestroika (a reestruturação), mostraram-se afinal incapazes de dar um sopro de vida a regimes esclerosados, ainda que possivelmente tenham contribuÃdo para a saÃda relativamente indolor de uma situação histórica difÃcil. Vivia-se o momento inaugural de um mundo que os mais otimistas, ou os mais ingênuos, julgavam livre dos conflitos abertos por uma restrita e quase inapelável visão bipolar. Como sabemos, ser adepto do comunismo ou do capitalismo era mais do que ter um credo polÃtico – implicava escolhas de vida, definia destinos individuais, de um lado ou de outro da "cortina de ferro".
A sabedoria do velho Bobbio, contudo, não descartava pura e simplesmente o comunismo e os comunistas. Estes seriam, como no extraordinário poema de Kaváfis, os bárbaros cuja presença ameaçadora, à s portas da cidade, condicionava a rotina de todos, paralisava as ações, congelava tudo numa atmosfera de ansiedade e medo. E, agora, a ausência dos bárbaros - pois subitamente a notÃcia é que não mais viriam - implicava um chamamento brutal à realidade. Não havia mais inimigos, e a vida, como requer outro verso notável, devia ser vivida como uma ordem, sem mistificação.
Num plano mais geral - perguntava-se ainda o filósofo -, as democracias saberiam dali por diante responder aos imensos problemas que tinham gerado a utopia que, no curso do tempo, se transformara no seu exato contrário e fora vencida? Conseguiriam por si sós, sem o medo incutido pelo adversário temÃvel, ampliar as liberdades, enfrentar novas e velhas desigualdades que dividiam norte e sul do planeta e, ao mesmo tempo, voltavam a se ampliar no interior de cada sociedade, mesmo as do Ocidente desenvolvido?
Bárbaros e habitantes da cidade, para seguirmos a sugestão do sábio e a metáfora do poeta, não tinham sido jamais seres indiferentes uns aos outros. Os bárbaros de 1917, ao assaltarem os céus, invocavam frequentemente o extremismo jacobino da revolução burguesa de 1789. Distinguiam-se com veemência dos girondinos do próprio campo. A velha social-democracia, afinal, era o tronco comum de que agora se afastavam ruidosamente os bolcheviques, para quem todos os outros passavam a ser "renegados" da causa proletária. E sobre estes traidores deveria recair um anátema ainda mais virulento do que o dedicado aos inimigos de classe. Uma esquerda afeita ao confronto nascia aÃ, motivando seus gestos extremados com a expectativa messiânica da revolução mundial.
Nos anos 1930, em textos até mesmo de comunistas heréticos impressiona o uso mais ou menos corrente de palavras como "total" ou "totalitário". O seu marxismo, ainda que se desviasse da ortodoxia, também se pretendia a matriz integral de uma nova civilização. Ele bastava a si mesmo, recusava acréscimos externos. O Estado soviético, que parecia imune a crises como a de 1929, podia ter uma forma polÃtica tosca, primitiva. Não importava: havia quem dissesse, pragmaticamente, que a pior ditadura do proletariado era sempre preferÃvel à melhor democracia burguesa...
A similitude com o Estado hitlerista era patente. O partido único, a arregimentação militarista das massas, o culto irracional ao lÃder carismático, entre outros elementos aterradores, confirmavam a semelhança e pretendiam atestar a obsolescência das formas democráticas. A superioridade racial apregoada de um lado parecia corresponder, grosso modo, à situação do lado adversário, em que uma classe supostamente universal construÃa seu próprio Estado e se arrogava o direito de submeter - ou liquidar, como no caso dos camponeses - grupos sociais inteiros.
No entanto, a esquerda jacobina convertida em Estado, que dividia o mundo em campos inconciliáveis e, por isso, era bárbara, tinha elementos que a levavam além do confronto e do desafio sectário. Às vezes, como no caso das frentes populares antifascistas, aproximava-se dos socialistas e dos "democratas burgueses" e via-se obrigada a questionar seus próprios dogmas, a imaginar caminhos diferentes daquele que tomara em 1917 e a levara a condescender com formas "totais" de poder. Apesar de si mesma - isto é, apesar dos traços odiosos da sua rudimentar construção estatal -, esteve maciçamente ao lado do Ocidente democrático e contribuiu de modo inestimável para vencer o mal absoluto. Stalin à parte, todo democrata, em algum momento, sentiu-se drummondianamente irmanado "com o russo em Berlim".
Esta breve memória talvez ajude a entender por que, depois do comunismo, há múltiplas razões para uma esquerda agora sem a menor complacência com as sociedades "totais", sem excluir as que resistem anacronicamente. Nos paÃses democráticos, as fúrias voltam a se desatar, os moedeiros falsos retomam o labor de sempre e os demagogos desempoeiram velhos figurinos. Por isso, é preciso tornar à ideia da grande aliança contra todos os que se mobilizam para corroer as bases da democracia liberal. Â
----------
Luiz Sérgio Henriques é o editor de Gramsci e o Brasil/ Esquerda Democrática.
----------
A má polÃtica dos mitosÂ
A refundação necessária
A degradação do discurso público
A esquerda é necessária
Sobre vieses e viseirasÂ