A esquerda moderna no Brasil, que compreende a organização dos trabalhadores em movimentos de luta por direitos econômico-sociais associados a correntes ideológicas de viés socialista, nasce em meio à confluência, na passagem do século XIX ao XX, da industrialização propiciada pela acumulação dos excedentes econômicos da cafeicultura paulista, da urbanização incrementada pelo fim da escravidão e do incentivo governamental à imigração europeia, visando ao aumento da produtividade do trabalho.
É daà que surgem as primeiras greves e organizações sindicais que iriam colocar em xeque a Primeira República por meio de inéditas reivindicações polÃtico-sociais, que abarcavam do direito de organização polÃtica à regulamentação da jornada de trabalho, passando por melhorias salariais e de condições de trabalho; reclamos inassimiláveis pelo Estado liberal-oligárquico de então.
A reação conservadora-liberal a tais movimentos, com repressão violenta das greves, perseguição aos lÃderes e deportação de estrangeiros anarquistas, acabou, ao contrário do que se esperava, impulsionando o ideário revolucionário entre os indivÃduos mais ativos das classes trabalhadoras e camadas médias. A partir do bloqueio ao diálogo e à participação, emergem, de um lado, o anarcossindicalismo como força mobilizadora nos maiores centros industriais - cujo ápice foram as greves de 1917-1918 - e, de outro, os tenentes, jovens oficiais subalternos do Exército com capacidade de organização e liderança para deflagrar rebeliões polÃticas nos quartéis, a partir de 1922, contra o domÃnio oligárquico-liberal.
O fracasso de ambas as vertentes propiciará a convergência de classe entre operários e setores médios a partir da criação do PCB (1922) e das repercussões da Coluna Miguel Costa-Prestes (1925-1927) dentro e fora da caserna. Os comunistas aparecem, então, em meio aos impactos da Revolução Soviética (1917) - que populariza o marxismo entre nós pela chave russa do "marxismo-leninismo" -, deslocando a influência anarcossindicalista para o segundo plano - influência esta já abalada pela deportação de seus lÃderes, a partir de 1921, e pelo isolamento polÃtico ocasionado por uma radicalização que propunha destruir as instituições vigentes por meio da ação direta de indivÃduos de uma classe ainda em formação e que, ademais, era preponderantemente católica e de engajamento sindical majoritariamente moderado.
Do lado dos tenentes, a situação não era melhor, pois sua filosofia positivista, de caráter elitista, estabelecia uma relação vertical-civilizatória com a massa popular, a partir de sua submissão aos cânones da sociedade industrial - vulgarmente traduzidos em termos de fé (Religião da Humanidade) -, que tornava o engajamento polÃtico da massa subalternizada não só um contrassenso, mas uma temeridade.
Miguel Costa e LuÃs Carlos Prestes, engajados na Revolta Militar de 1924, é verdade, rompem com essa perspectiva ao iniciarem sua marcha pelo interior do paÃs - maior em extensão e tempo de duração do que a famosa Grande Marcha dos comunistas chineses de 1934-1935 -, conscientizando os camponeses sobre as razões polÃtico-econômicas de sua pobreza e a necessidade da revolução para dar fim a esta opressão e à dominação das oligarquias agrárias sobre o paÃs. Todavia, sem serem derrotados militarmente, os revoltosos se dispersariam pelo paÃs e pelo exterior após verem seus esforços frustrados pela inação polÃtica do campesinato e pelo temor das populações rurais diante dos saques e violência que sua passagem provocava.
Enquanto as formas radicalizadas de ação se viam prejudicadas por sua inspiração utópica, permeada tanto por equÃvocos polÃtico-doutrinários como tático-estratégicos, com seu consequente isolamento social, os comunistas, liderados por Astrojildo Pereira e Octavio Brandão, inauguravam uma nova radicalidade, ao romperem com a perspectiva antipolÃtica dos anarquistas e estabelecerem alianças polÃtico-eleitorais com segmentos moderados da esquerda para a exploração dos (poucos) espaços democráticos existentes na República Velha (1889-1930), ao mesmo tempo que procuravam atrair os tenentes para o partido ou uma aliança democrático-popular. Mas, por esses azares da história, perto de colherem os frutos de sua estratégia mais consistente e colada à realidade, os comunistas seriam atropelados por seus camaradas da Internacional Comunista (IC), que, sintonizados com a guinada stalinista ocorrida na União Soviética após a prisão de Trotski, em 1929, pressionaram o PCB a mudar sua direção, tida como excessivamente moderada (bukharinista).
Morto Lenin, em 1924, a russificação do comunismo internacional se completaria nos anos 1930, agora sob a égide do orientalismo despótico do cristianismo ortodoxo, em oposição ao ocidentalismo libertário do materialismo histórico, com reflexos também no Brasil, onde a IC iria iniciar um perÃodo de expurgo das lideranças "reformistas" em proveito daquelas que considerava aptas à "ação revolucionária" e mais diretamente ligadas à classe operária (obreirismo). Com isso, a interessante experiência comunista brasileira seria desperdiçada, impondo-se, a seguir, a filiação ao PCB dos tenentes convertidos ao comunismo. Estes, a partir daÃ, se empenhariam na preparação do terceiro levante tenentista (1935) sob a liderança de Prestes - filiado ao partido, por pressão de Moscou, em 1934 -, cuja derrota polÃtico-militar, então sofrida, marcará o recuo, mas não o abandono, do radicalismo pequeno-burguês no interior do PCB.
A substituição do novo radicalismo democrático-popular pelo radicalismo militar-popular (prestismo) está na raiz da sinuosa trajetória da esquerda radical brasileira desde então, que se tornará hegemônica - confundindo-se com a própria noção de esquerda - dada a incapacidade do sistema polÃtico, reformado pela Revolução de 1930 e pela Constituição de 1946, de institucionalizar as organizações intersindicais e partidárias dos trabalhadores. Bloqueou-se, assim, a difusão da cultura democrática em seu seio e reforçou-se a internalização do putschismo em sua cultura polÃtica.
O blanquismo - que é como o putschismo se propagou na tradição revolucionária internacional - voltaria a jogar um papel fundamental entre nós a partir da Revolução Cubana (1959), em especial depois do golpe de 1964, possibilitando o aparecimento de inúmeras dissidências comunistas "revolucionárias" que viriam, na fase da abertura geiselista - de intensa repressão ao PCB -, somar-se ao PT, mas isto é assunto para um próximo artigo.
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Hamilton Garcia de Lima é cientista polÃtico e professor da Uenf–Darcy Ribeiro.
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