A democracia representativa no Brasil é uma experiência historicamente recente, cuja inauguração pode ser associada ao fim da monarquia escravista (1888-89) e ao processo de urbanização e diversificação econômico-social que a partir daà se encorpou. Se comparada à da Inglaterra, bem mais antiga, é também bastante mais irresoluta. Os ingleses, depois de um longo perÃodo de disputas religiosas (1547-58), conflitos polÃticos agudos e guerras civis (1640-89) - com um Rei decapitado (1649) e uma República autoritária (Cromwell, 1653-58) -, encontraram seu
modelo numa Igreja reformada (1559) e numa Monarquia Constitucional governada por um Parlamento representativo sob a égide da
Declaração de Direitos (1689), que afirmava
a liberdade dos indivÃduos como base inalienável das formas de governo.
No nosso caso, nem a Igreja foi reformada nem o poder absoluto do Estado foi decapitado; tudo se deu, como reza nossa tradição, de maneira segura e sincrética, mantendo-se os indivÃduos subjugados ao poder oligárquico, fonte primeira do poder de Estado. Depois de derrubada a Monarquia por uma conjuração militar-civil (1889), na qual o povo assumiu o papel de expectador - tanto ativo como passivo -, inaugurou-se um perÃodo (Primeira República) em que as oligarquias agrárias ganharam autonomia (federalismo) e as burguesias, voz ativa no cenário polÃtico das mais importantes cidades (liberalismo), sem, contudo, ameaçar o poder estabelecido sobre o vasto território - inclusive os currais eleitorais, beneficiados pela vigência do voto aberto e a ausência de autoridade corregedora isenta - e as mentalidades (Igreja Católica).
Não obstante o conservadorismo do pacto elitista inaugural da República - com a fracassada pretensão reformista de certos setores militares (positivistas) -, as novas classes sociais urbanas manifestariam seu descontentamento polÃtico, mesmo tendo contra elas o liberalismo de fachada instituÃdo pela Constituição de 1891 e a dura repressão das forças policiais. Medidas como o fim do voto censitário, dos privilégios nobiliárquicos e da dominância eclesiástica sobre as localidades e a educação - entre outras iniciativas legais modernizadoras -, mesmo descasadas de reformas econômico-sociais progressistas (agrária, urbana, tributária, financeira, etc.), foram suficientes para, pelo menos, inaugurar um perÃodo de aspirações democráticas, que acabaria por desnudar o descompasso entre a superestrutura jurÃdico-polÃtica e as mudanças econômico-sociais, de sentido democratizante, provocadas pelo avanço do capitalismo - descompasso este que, não obstante os avanços percebidos desde 1985 (Nova República), está na base da instabilidade polÃtica dos nossos dias.
As curtas experiências liberal-democráticas vividas após as intervenções civil-militares de 1930 e 1945 - logo descontinuadas por intervenções análogas de polaridade invertida e sentido diverso, em 1937 e 1964 - demonstraram a fragilidade (e a força) de nossa tradição republicana. Nelas, podemos enxergar as marcas profundas do nosso modo de ser contemporâneo, radicado na formação social polarizada por quatro séculos de latifúndio, em que tanto a sociedade civil se forjou comprimida pelo esmagador peso do agrarismo colonial, como a sociedade polÃtica (Estado) se amalgamou ao compromisso neopatrimonial, mesmo quando sob a liderança de seus setores dissidentes (populismo).
Enquanto 1930 e 1945 nos revelaram uma sociedade civil trabalhadora frágil, incapaz de conter os arroubos jacobinos de suas lideranças - rupturismo que propiciou o retrocesso autoritário após a aventura "revolucionária" de 1935 e depois, em sentido inverso, levou os comunistas a apoiar o ditador que antes queriam derrubar, precipitando a intervenção militar redemocratizadora -, 1937 e 1964 mostraram a inapetência da sociedade civil burguesa em lidar com as pressões legÃtimas (e ilegÃtimas) pela democratização vindas de baixo, cedendo ou estimulando o protagonismo conservador de caserna ao invés de pactuar a reforma das instituições republicanas da qual participavam - entre elas, o Parlamento e o Judiciário -, de modo a reverter seu embotamento histórico (patrimonialismo).
A semelhança com a crise de hoje não é mera coincidência: a sociedade civil trabalhadora continua presa fácil de lideranças retrovisoras (bolivarianistas) e de um populismo que, embora descido à s fábricas, ainda veste o manto sagrado dos pais dos pobres, enquanto as principais instituições republicanas (redemocratizadas) claudicam pela insuficiência das reformas até aqui efetuadas, abrindo amplo espaço para o conservadorismo de caserna, agora autonomizado pela fórmula polÃtico-eleitoral do bolsonarismo.
De auspicioso, apenas a emergência de uma nova sociedade civil burguesa disposta a renovar as lideranças polÃticas do liberalismo, contra a vontade de seus partidos tradicionais; um novo ativismo do Ministério Público e do Judiciário, que - dentro de seus limites funcionais e ainda adstritos à esfera federal - permitem o avanço das reformas institucionais que Executivo e Legislativo tentam barrar; e uma liderança militar (Alto Comando) até aqui inclinada a apoiar ambas as novidades e agir, se necessário, apenas na condição de última instância.
Tal conjunção, que tem constituÃdo até aqui a verdadeira âncora de nossa ainda frágil liberal-democracia - diga-se de passagem, contra a vontade de boa parte das esquerdas, inclusive a desconfiança de certos setores seus de viés liberal -, carece, é verdade, de uma concertação polÃtica mais ampla do que a permitida pelos parâmetros corporativos dos operadores do direito; mas isto parece estar sendo superado, não obstante sua mais nÃtida expressão eleitoral, Joaquim Barbosa, ter desistido da postulação por conta de uma aparente falta de vocação.
O que é importante nisso tudo é que a sociedade civil, por meio da polÃtica bem pensada e articulada, pode vencer a pesada herança semirrepublicana que resiste no Estado, nas corporações e nas mentes de todos os quadrantes ideológicos, mas para isso vai ter que se livrar dos mitos e das concepções ideológicas anacrônicas e pseudorrealistas que a impedem de enxergar o cenário em toda a sua inteireza e complexidade, inclusive contemplando os remédios contra a pior de todas as heranças: a marginalização social por meio da pauperização econômica e da alienação laboral-educacional, que exigem a reinvenção do liberalismo (liberalismo-social) e do progressismo-nacional (neodesenvolvimentismo).
---------
Hamilton Garcia de Lima é cientista polÃtico e professor da Uenf–Darcy Ribeiro.
----------
Especulações em torno do dia seguinte
Bresser-Pereira entre a economia e a polÃtica
Reforma polÃtica e governo representativo
Por que somos assim?
A questão militar