Há quase uma década e meia o sinal de alerta, intensamente amarelo e, logo em seguida, fortemente vermelho, acendeu para o Partido dos Trabalhadores. Quando do assassinato do prefeito de Santo André, Celso Daniel, em 2002, os sinais de promiscuidade entre polÃtica e negócios particulares, receita partidária e propina, atos administrativos e tráfico de influência, se misturavam e se confundiam.
Há uma hipótese de crime comum para o assassinato, transformada em verdade oficial. Mas a versão de atentado polÃtico tem ingredientes que obrigam a uma revisão à luz dos fatos atuais. Celso Daniel tinha 50 anos, 10 dos quais como prefeito da importante cidade do ABC paulista, vizinha ao municÃpio que marcou a origem polÃtica de Lula e do PT, reeleito para um terceiro mandato.
Era um dos mais antigos e experientes dirigentes polÃticos petistas a alcançar o poder executivo, deixando de ser apenas um oposicionista parlamentar ou militante social. Os documentos deixados por Celso Daniel, que era coordenador de campanha nacional do PT, mostram que ele investia justamente contra o desvio de recursos obtidos através de contatos junto a doadores potenciais de recursos para o partido. Ao invés de irem parar no caixa partidário, vazavam para bolsos particulares. Dirigentes petistas começavam a se corromper.
A cúpula desconhecia a formação desse fenômeno, de desnaturação das bandeiras de luta do principal - e o mais ideológico - dos partidos de oposição no Brasil? A tática de declarada alienação dos fatos subterrâneos e dos bastidores da vida pública, adotada por Lula com uma constância e determinação impressionantes, não convence, a não ser aos fanáticos ou aos que - por diversos motivos - se recusam a ver os fatos.
O crescimento do volume de dinheiro em circulação pelas engrenagens do partido, cada vez mais próximo do poder nacional, saltava aos olhos e transbordava do sigilo e da confidencialidade dos personagens em episódios patéticos, como o do dinheiro escondido na cueca. O erro monumental desses dirigentes partidários em processo de corrupção foi achar que a bandeira do PT os ocultaria sempre.
É a sÃndrome de Harry Potter, o personagem da ficção que se tornava invisÃvel quando ficava debaixo da sua capa mágica. Essa ilusão fez os petistas corrompidos perderem o senso do perigo. Julgaram-se inatingÃveis. Sempre podiam alegar que estavam defendendo a causa.
De escândalo em escândalo, de flagrante criminal em flagrante criminal, o braço institucional do Estado chega agora ao colarinho do seu principal lÃder, Luiz Inácio Lula da Silva. É quase inverossÃmil a forma de reagir que ele adotou, na sexta-feira da semana passada, ao ser procurado em Buenos Aires, onde estava, por jornalistas.
Os repórteres queriam saber como ele recebia a informação, divulgada na véspera, através do portal da revista Época, de São Paulo, de que o delegado da PolÃcia Federal, Josélio Azevedo de Sousa, pedira autorização ao Supremo Tribunal Federal para ouvir o ex-presidente da república na investigação da Operação Lava-Jato. A razão da necessidade do depoimento: Lula pode ter sido "beneficiado pelo esquema em curso na Petrobrás".
"Eu não sei como comunicaram a você e não me comunicaram. É uma pena", reagiu Lula. Uma reação sutilmente inteligente: busca comprometer e tornar suspeito o autor da convocação, lançando sobre ele a suspeita de ter sido o responsável pelo vazamento da informação e questionando o processo que o atinge, por ter possibilitado à imprensa saber do fato antes que ele fosse citado. A tática foi complementada pelo PT ao destacar que o pedido do depoimento foi feito por um delegado individualmente e não pela corporação.
A estratégia é vã. A origem do vazamento da informação pode ser suspeita e deve ser investigada. Mas esse incidente de percurso não autoriza o ex-presidente a se declarar vÃtima de uma trama (ou conspiração).
No curso do procedimento, a partir da chegada do ofÃcio ao STF, a inconfidência podia acontecer de modo natural sem atropelar a tramitação regular do pedido.
O relator do processo, ministro Teori Zavascki, submeterá a solicitação ao Procurador Geral da República antes de decidir se autoriza ou não a oitiva de Lula. Pode ainda desqualificar o pedido e remetê-lo a uma instância inferior da justiça, já que, na condição de ex-presidente, Lula deixou de ter foro privilegiado.
Quanto ao delegado, ele exerceu sua competência quando enviou seu requerimento diretamente ao relator dos processos derivados da Operação Lava-Jato, sem submetê-lo ao seu superior hierárquico. Como presidente do inquérito, um dentre tantos que estão sendo realizados a partir das ações judiciais em torno da corrupção na Petrobrás, ele tem autonomia para agir assim.
Independentemente dos desdobramentos da sua iniciativa, que trato neste momento (sábado, 12 set.), sem poder prevê-los até a edição deste jornal, há um aspecto relevante no ofÃcio do delegado, a ressaltar o ineditismo da corrupção na qual mergulhou o PT em relação aos extensos e numerosos antecedentes semelhantes na história brasileira (e universal).
O delegado da PF, depois de analisar os volumosos autos do inquérito, concluiu estar diante de um "esquema de poder polÃtico alimentado com vultosos recursos da maior empresa do Brasil", que durou uma década e abrangeu seis dos oito anos do governo Lula, além de todo o primeiro mandato da sucessora que ele escolheu solitariamente e impôs a todos, inclusive ao paÃs.
Não constitui nenhuma novidade sua observação de que, nesse perÃodo, só conseguiam ocupar cargos de direção na estatal as pessoas que contassem com respaldo polÃtico, do PT e dos seus principais aliados. Era um acerto de segundo ou terceiro escalão? É o que os defensores do governo argumentam. O delegado Josélio de Souza, porém, diz que, dentro da lógica desse esquema, "os indÃcios de participação devem ser buscados não apenas no rastreamento e identificação de vantagens pessoais porventura obtidas pelo então presidente, mas também nos atos de governo que possibilitaram que o esquema se instituÃsse e fosse mantido", já que, na sua avaliação, "não se trata apenas de um caso de corrupção clássico". É um esquema global de poder.
Ele assumiu um tamanho tal que o delegado informa ter começado em 2011 um conflito interno no governo Dilma entre dois grupos do Partido Popular, um dos mais ativos na base aliada do PT e dentro da Petrobrás, que disputavam a indicação para a diretoria de abastecimento da estatal: "O objetivo seria concentrar o recebimento da propina extraÃda de concorrentes".
No mesmo dia em que a revista Época divulgava com exclusividade o pedido do depoimento de Lula, o Jornal Nacional da TV Globo vazava trechos do depoimento do chefe do cartel de 27 empresas que atuavam na Petrobrás. Ricardo Pessoa, dono da empreiteira UTC, disse que em 10 anos, a partir de 2004, pagou - entre doações oficiais e entregas em dinheiro vivo - 20,5 milhões de reais. Até 2008, apenas a representantes dos partidos situacionistas e seus intermediários. Só a partir daÃ, também a funcionários da Petrobrás.
Segundo o relato do empreiteiro, João Vaccari Neto, tesoureiro do PT, "já ia conversar sobre os pagamentos com o conhecimento completo da situação, tendo detalhes da obra, do valor e tendo conhecimento de que a UTC havia vencido o contrato". Logo, com informações e cobertura dadas a partir do alto, acima dele.
Quem estava nessa altura? É a resposta que a partir de agora a continuação da investigação irá buscar. Dependendo da sua fundamentação, ela será o atestado de óbito do PT como alternativa de verdadeira mudança no Brasil.
----------
Lúcio Flávio Pinto é o editor do Jornal Pessoal, de Belém, e autor, entre outros, de O jornalismo na linha de tiro (2006), Contra o poder. 20 anos de Jornal Pessoal: uma paixão amazônica (2007), Memória do cotidiano (2008) e A agressão (imprensa e violência na Amazônia) (2008).