O sociólogo Brasilio Sallum, professor titular da Universidade de São Paulo (USP), estudou minuciosamente o processo de impeachment do ex-presidente Fernando Collor, o primeiro na história da América Latina. Seu estudo acaba de sair na forma de livro peÃa editora 34, com orelha assinada pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, num momento mais que oportuno. A palavra impeachment está de volta, na boca até da presidente Dilma. Como escreve Fernando Henrique, a tese de Sallum é que o processo de impeachment de Collor inaugurou o presidencialismo de coalizão - e o sistema, gestado para dar estabilidade polÃtica ao paÃs, sofre agora percalços consideráveis. Pessimista em relação ao futuro imediato do paÃs, Sallum não vislumbra o impeachment de Dilma nem saÃdas fáceis para a crise. (Guilherme Evelin e Vinius Gorczeski, Época, 25 jul. 2015)
Alguns opositores da presidente Dilma Rousseff apostam que uma mobilização popular em agosto poderá ser o gatilho para detonar um processo de impeachment. No caso do impeachment do ex-presidente Fernando Collor, houve uma mobilização importante nas ruas. Com Dilma, isso poderá se repetir?
Contra o governo Collor, havia um processo de mobilização, que se manifestava em iniciativas da CUT, da CNBB, da OAB. Era uma mobilização razoável, mas não muito extensa. Até que surgiram as revelações do Pedro Collor dizendo que o PC Farias era o testa de ferro do presidente. Elas foram uma espécie de estopim de um barril de pólvora que estava crescendo. A demanda popular é importante porque ela dá legitimidade ao impeachment. Mas só a mobilização popular não basta. Depois dessas denúncias, houve uma articulação polÃtico-partidária do PT, do PSDB e do PMDB. Um pedido de CPI parado no Congresso ganhou força, e ela foi instaurada, somando-se à articulação da sociedade até então sem força. Contribuiu ainda a fundação do Movimento Ética na PolÃtica. Essa coalizão polÃtica foi fundamental, porque é preciso obter dois terços de votos da Câmara para que o processo de impeachment avance para julgamento no Senado.
O que tornou possÃvel aquela coalizão contra Collor, apesar dos interesses polÃticos divergentes de partidos que depois acabariam se tornando rivais?
A gente acabava de sair de um processo de democratização, que tinha produzido a democracia como valor. Grupos como OAB e CNBB elaboraram a campanha pelo impeachment do Collor com essa retórica. Não havia experiência de impeachment na América Latina até então. Alguns polÃticos que participaram de todo aquele processo tinham muita cautela em relação ao que poderia acontecer no paÃs se Collor fosse afastado. Só explicitaram a demanda por impeachment ao receberem a documentação contendo provas. A preocupação com a preservação da democracia era um elemento de unidade da coalizão. A articulação avançou também porque os parlamentares foram convencidos não apenas de que o presidente Collor não tinha mais condições de governar, mas também de que o próximo presidente - à quela ocasião o vice Itamar Franco - conseguiria articular uma coalizão que não os excluÃsse. Quarenta por cento do Congresso sustentava o governo Collor. Para quebrar essa resistência, não bastava dizer que Collor recebeu recursos do PC Farias. A dinâmica poiÃtica pede que o grupo que sustenta o presidente se desloque, e ele se deslocou em torno de uma coalizão do Itamar. O Collor atuava de um jeito que parecia que o Congresso não tinha relevância. O impeachment foi uma afirmação do Legislativo. Quando Itamar entrou, ele demorou para montar ministério e, quando o fez, fez um governo de coalizão, mostrando que o Congresso era relevante. Esse elemento foi chave.
O senhor vê a possibilidade de repetição de uma coalizão contra Dilma?
Ainda não vejo essa possibilidade. As pessoas que pedem impeachment agora têm um problema. A presidente foi reeleita. Há uma discussão jurÃdica sobre se este governo e o anterior são uma coisa só e, portanto, se um crime noutro governo pode levar à perda do atual mandato. É preciso resolver, primeiro, essa questão. Outra questão-chave é saber para qual lado essas forças que pensam o impeachment se deslocarão. É preciso haver alguma coalizão partidária qualquer. Contra o Collor, você tinha um processo de unanimidade. Os grupos estavam mobilizados numa só direção. Hoje, há uma divisão. Temos uma fragmentação de demandas, vários coletivos, mas todos sem diretrizes e sem elementos para o qual as forças se polarizem. Existe um conjunto de partidos e parlamentares que tem derrotado o governo sistematicamente. Nem sempre pelos melhores motivos. Esse é um exemplo da gravidade da nossa crise. Você tem uma situação em que os agentes parecem não ter um destino comum, nem ao menos horizontes em disputa. Os agentes, os partidos, as forças polÃticas não desenham um futuro que seja atraente e que force uma articulação em prol disso. Nem governo nem ninguém aponta um horizonte para além dessa crise. Daà resulta uma boa dose da desesperança sobre nosso futuro.
Essa falta de horizontes se deve à falta de grandes lideranças polÃticas?
Estamos no fim de uma época, da ascensão do movimento de democratização que produziu a estabilização poiÃtica no Brasil. Esse grupo que vinha de longe ou morreu ou foi atingido pela corrupção e se retirou da vida pública. Ele é substituÃdo por uma nova geração, sem lideranças de peso, em todos os partidos. Parte das lideranças do PT está presa. Metade do PSDB envia cartas para a Câmara contra o projeto do "distritão" e outra vota a favor desse projeto. Há uma dificuldade de gestão e articulação dentro dos próprios partidos. No processo do Collor, os partidos e suas lideranças foram muito hábeis em esperar que o fruto amadurecesse. Mas hoje, por enquanto, não vejo amadurecimento polÃtico suficiente nem um elemento óbvio que resulte em impeachment. Não significa que não haja no futuro. Mas é preciso haver um grupo que vislumbre e atraia aliados para isso.
Na orelha de seu livro, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso escreveu que o impeachment deu forma ao presidencialismo de coalizão. Hoje, estamos assistindo ao colapso desse sistema?
Não acho que seja uma crise do presidencialismo de coalizão, mas desta coalizão. Temos um sistema que funciona sob a liderança e a autoridade do presidente. Quando ele perde a autoridade, o sistema não funciona direito. A liderança que o presidente exerce é quase insubstituÃvel. Isso, infelizmente, falta à presidente Dilma Rousseff. Ela não consegue produzir uma diretriz entre os aliados. Isso produz uma desorganização do processo legislativo e de gestão pública muito forte. A perda de autoridade tem a ver com o jeito que a campanha eleitoral foi tocada, muito aquém dos padrões desejados. Houve mentira. Da forma como foi obtida a vitória, criou-se um enorme ressentimento. A própria presidente é culpada por isso. No comÃcio da vitória, ela não falou o nome do adversário. Depois, ela resolveu se envolver na disputa da presidência da Câmara e arrebentou a coalizão.
Dilma tem condições de se recuperar e terminar bem seu mandato?
Ela tem tempo para isso, mas não sei se ela tem capacidade. A gente não sabe que gato vai sair dessa toca. No fundo, não depende só dela. Depende do conjunto das forças e como elas se organizam. E não sabemos quanto tempo vai demorar o processo recessivo que vivemos. Outro problema é que a presidente tem uma dificuldade de gestão e claramente não se educou na arte de fazer polÃtica. Isso toma muito difÃcil a saÃda.
O senhor não vê então saÃda para essa crise?
Não há crise que não seja superada. O processo polÃtico vai produzir alternativas. Mas não sou otimista de que serão imediatas. Nem sei que direção ela vai tomar. A crise que vivemos é maior que aquela do Collor, mais pesada, complexa e complicada, e as saÃdas são menos óbvias e menos fáceis de vislumbrar. Há duas razões principais: a falta de autoridade da presidente e a falta de projeto para o futuro. Há uma polarização entre liberais e desenvolvimentistas que não ajuda a apontar uma saÃda da crise. Vamos fazer ajustes, mas qual a nossa meta? Para onde vai o paÃs? Agora não é mais a democracia que está em jogo. É uma reorientação do paÃs no cenário internacional e num mundo novo que surgiu dos anos 1980 para cá. Estamos imaturos para discutir essa nova situação do capitalismo mundial, em que não podemos mais nos fechar em nossos próprios territórios. A maioria dos desenvolvimentistas professa um nacionalismo muito defensivo como forma de enfrentar a crise. Ou bem mudamos essa visão e nos tornamos competitivos no mercado mundial, inovando na indústria, ou vamos encolher a cada dia. Em vez de nos defender das vicissitudes do mundo, poderÃamos participar ativamente de sua construção. Isso daria um horizonte.
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