"O que acontece nessas manifestações é uma recusa". A afirmação é do professor e pesquisador Luiz Werneck Vianna, ao comentar a onda de protestos que se disseminou pelas principais capitais brasileiras na última segunda-feira, dia 17-06. "Ao longo desses anos, essa geração cresceu vendo e se confrontando com uma situação em que os partidos e a classe polÃtica em geral se desmoralizavam a cada dia [...]. Tudo isso foi distanciando a população, especialmente os jovens, da vida institucional. Eu insisto: o problema todo é auscultar de forma correta os sinais que estão vindo e agir da forma mais tempestiva possÃvel, pois há o risco de não haver mais tempo".
Para ele, as manifestações expressam "um sentimento de exclusão da arena pública" e "a busca por reconhecimento social". "As pessoas querem ser reconhecidas, querem que sua dignidade e identidade sejam respeitadas, legitimadas. O tema do reconhecimento, por um lado, e o da participação polÃtica, por outro, são o combustÃvel dessa movimentação", avalia.
Na entrevista concedida por telefone para a IHU On-Line, Werneck Vianna afirma torcer para que o processo desses dias "sirva como uma sinalização poderosa para que mudanças importantes na polÃtica brasileira comecem a ser encaminhadas. É um sinal de alerta. Se nada for feito a tempo, se é que ainda há tempo, esse movimento pode ter um desfecho muito ruim. É preciso evitar [...] que 2013 tenha o mesmo desfecho que 1968, isto é, uma juventude desencantada com a polÃtica, radicalizada e que procure formas inadequadas de resolução de problemas".
Luiz Werneck Vianna é professor-pesquisador na PUC-Rio. Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo, é autor de, entre outros, A revolução passiva: iberismo e americanismo no Brasil (Rio de Janeiro: Revan, 1997); A judicialização da polÃtica e das relações sociais no Brasil (Rio de Janeiro: Revan, 1999); e Democracia e os três poderes no Brasil (Belo Horizonte: UFMG, 2002). Sobre seu pensamento, leia a obra Uma sociologia indignada. Diálogos com Luiz Werneck Vianna, organizada por Rubem Barboza Filho e Fernando Perlatto (Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2012).
Como podemos compreender as manifestações sem lideranças que ocorreram ontem e na última semana em várias capitais brasileiras? O que elas significam?
De um lado, o afastamento imenso da população, em especial dos jovens, da polÃtica e dos partidos polÃticos. Esse é o primeiro ponto, muito evidente. O porquê do movimento, aparentemente por um motivo quase banal - o aumento irrisório do preço das passagens -, ter desencadeado esta proporção só pode ser entendido como um sentimento que vem se acumulando de exclusão e insatisfação. Ao lado disso, se nas ruas não há vestÃgios de organização, as redes sociais estão absurdamente dominadas por um diálogo interminável a respeito da situação da geração atual, que tomou forma a partir de um episódio que podia ser entendido como algo de menor expressão. O fato também de terem sido rechaçados por uma repressão muito forte, após seus primeiros movimentos, incendiou a imaginação. Enfim, essa geração se pôs no mundo e está aà a sua marca.
Por outro lado, é preciso considerar que esse paÃs tem passado por mudanças muito significativas na sua composição social, na sua demografia, na sua estrutura de classes. Há uma nova classe média, não a classe dita "C", relacionada a esses programas governamentais, como o Bolsa FamÃlia. É uma classe média dos novos serviços, das novas ocupações, que é muito diferente das classes médias tradicionais, tal como havÃamos conhecido. Trata-se de uma classe média de um novo tipo. E ela está sem perspectiva quanto ao seu projeto de vida. Além do mais, os setores baixos dessa classe média estão cultivando um ressentimento muito grande. Este ressentimento se manifestou na raiva com que essas manifestações se deram.
Na Espanha, as manifestações dos indignados do movimento 15M demonstraram um desconforto econômico, polÃtico e social. As mesmas razões motivam as manifestações no Brasil, ou elas são de outra ordem?
Acho que não são as mesmas razões. O tema aqui é mais polÃtico e cultural. É um sentimento de exclusão da arena pública. A falta de participação dessa geração na polÃtica é algo que chama a atenção. Por outro lado, a busca por reconhecimento social desses grupos emergentes das classes médias é muito forte e o tema do reconhecimento é muito associado ao tema do ressentimento. As pessoas querem ser reconhecidas, querem que sua dignidade e identidade sejam respeitadas, legitimadas. O tema do reconhecimento, por um lado, e o da participação polÃtica, por outro, foram o combustÃvel dessa movimentação. Não creio que isso esteja vinculado diretamente a causas econômicas. Até porque, como se observa, do ponto de vista da economia, há no paÃs - e as pesquisas indicam isso - um sentimento de satisfação, de que a vida tem melhorado e pode melhorar ainda mais. A França da Revolução Francesa - anotou Tocqueville no seu trabalho clássico O Antigo Regime e a Revolução - estava em um momento de expansão econômica. Diz ele, nessa obra, "nunca o campesinato teve tanto acesso à propriedade como naquele momento". Havia um sentimento de melhoria do ponto de vista econômico. No entanto, veio a revolução. O que ele dizia é que quem ficasse procurando as causas a partir desse ângulo jamais entenderia a Revolução Francesa. Ela deveria ser entendida pela sua especificidade polÃtica naquele momento. Com isso, ele quis dizer que o absolutismo francês havia desfeito todas as organizações intermediárias vigentes na França tradicional e a massa do povo ficou isolada, fragmentada, antepondo-se diretamente ao Estado.
Devemos procurar as origens desse movimento que ainda não terminou e não se sabe para onde vai. Fora as redes sociais, não há nada que esteja organizando a sociedade, especialmente essa multidão de jovens, que vem acorrendo à vida social. Não há clubes, não há partidos. Estes (os partidos) vivem inteiramente orientados para sua reprodução polÃtica, eleitoral, não têm trabalho de consolidação, de nucleação. A própria Igreja Católica, que antes cumpria um papel muito importante nessa organização, hoje tem um papel muito pequeno. A sociedade está inteiramente isolada da esfera pública. São dois mundos que não se tocam. Por toda a parte viam-se faixas com os seguintes dizeres: "nós não acreditamos na representação que aà está". Foi um movimento dirigido também contra essa polÃtica. Temos que procurar as origens desse processo, que mal começou, nessa forma de relação entre Estado e sociedade, entre polÃtica e sociedade. Está evidente que temos que passar por reformas polÃticas importantes no sentido de que o sistema polÃtico se abra à participação. Esses partidos que estão aà foram chamados pelo ministro Joaquim Barbosa de "partidos de mentirinha". Embora ele seja muito midiático, nesse ponto não há como discordar dele.
Um movimento desses, multitudinário, que vai à s ruas, sem lideranças conhecidas, é um perigo. Tudo pode acontecer. Abre-se campo para a selvageria. Com quem negociar? Tomara que o processo desses dias - de ontem (17-06-2013) em particular - sirva como uma sinalização poderosa para que mudanças importantes na polÃtica brasileira comecem a ser encaminhadas. É um sinal de alerta. Se nada for feito a tempo, se é que ainda há tempo, esse movimento pode ter um desfecho muito ruim. É preciso evitar - e escrevi isso em um artigo que saiu hoje (18-06) no Estadão - que 2013 tenha o mesmo desfecho que 1968, isto é, uma juventude desencantada com a polÃtica, radicalizada e que procure formas inadequadas de resolução de problemas.
E quais seriam as formas adequadas?
Participação polÃtica e organização social.
Ainda há um cenário propÃcio para isso?
Se não houver, as coisas irão mal. O sinal que soou é muito forte para não ser ouvido e bem interpretado. A polÃtica de presidencialismo de coalizão, da forma como a praticamos, demonstrou seu esgotamento, levou à desmoralização da polÃtica com o "toma lá, dá cá" e a compra de votos.
O que significa uma manifestação cujo grito de guerra seja "povo unido não precisa de partido"? Trata-se da falência da polÃtica representativa? Como pensar uma polÃtica sem partidos?
O que acontece nessas manifestações é uma recusa. Ao longo desses anos, essa geração cresceu vendo e se confrontando com uma situação em que os partidos e a classe polÃtica em geral se desmoralizavam a cada dia. Basta ver o noticiário dos jornais: corrupção disso, negociata daquilo. Tudo isso foi distanciando a população, especialmente os jovens, da vida institucional. Eu insisto: o problema todo é auscultar de forma correta os sinais que estão vindo e agir da forma mais tempestiva possÃvel, pois há o risco de não haver mais tempo. O que temos a comemorar nesta terça-feira é um fato importantÃssimo: de que esse movimento ainda não carrega um morto. Se tivesse havido conflitos mais severos, com mortos, não se sabe como o paÃs teria acordado hoje. Agora é preciso fazer um balanço do que vem acontecendo e apresentar alternativas e soluções. Nisso, a imprensa tem um papel muito importante de localizar entre eles lideranças, fazer com que elas falem, identificá-las. Porque evidentemente as lideranças podem estar subterrâneas. Afinal, deve haver pessoas que estejam exercendo uma liderança silenciosa sobre esse processo todo. 2013 pode ser o começo de uma cena nova, significando a entrada dessa geração na polÃtica institucional brasileira. Ou, contrariamente, com um mau desfecho, uma má solução, isso pode acabar como em 1968, radicalizando a juventude e afastando-a da vida polÃtica.
Que modelo de polÃtica se pode vislumbrar a partir dessa caracterÃstica mais participativa da população, sem lideranças especÃficas?
Isso se forma no calor da hora. Pode levar tempo, é preciso ter calma, inteligência, para poder enfrentar uma situação dessas. Não ter pressa. Essa crise vai se alongar. Grande parte desses jovens que estão nas ruas é estudante. Eu vi na universidade em que eu trabalho eles se organizando para a passeata. Acredito que hoje eles estarão comentando o que se passou ontem. Nesse processo de diálogo, de comunicação entre eles mesmos, e da comunicação entre eles e nós, intelectuais, polÃticos e imprensa, a coisa vai se sedimentando, criando uma nova cultura. O fato é que estamos em um deserto cultural, polÃtico, num Saara monumental em que tudo o que era vivo foi levado para dentro do Estado, através desta cooptação polÃtica desenfreada que esse governo - que é Estado - desencadeou. E esses movimentos sociais cooptados (como ficou claro) não têm a menor condução dos processos reais. O que eles fizeram ontem? Foram capazes de dar diretivas? Não. Esses movimentos perderam a aura, a autenticidade, a legitimidade, perderam bases.
Gilberto Carvalho disse que o governo está preocupado com os protestos e quer garantir diálogo com os movimentos para entender "anseios importantes" que têm levado as pessoas a se manifestar. O governo foi pego desprevenido?
O governo e todos nós vamos ter que entender. O que eu posso dizer é que o acontecimento foi de tal proporção que os seus próprios participantes, hoje, devem estar na condução, nas escolas, nas universidades, discutindo o que houve ontem e o que fazer. O que está claro é que a grande massa desse movimento reprimiu a violência de alguns grupos. Ali se misturou tudo. Os setores mais ressentidos tiveram a oportunidade de manifestar sua fúria, num protesto pela sua exclusão, pelo fato de não serem reconhecidos, e no protesto pelas polÃticas públicas que não funcionam, como tantas faixas falavam: "não queremos Copa, queremos saúde e educação".
Essa questão da Copa demonstrou ser realmente um desastre, com gastos suntuosos para a organização de um espetáculo de tipo europeu, que não tem nada a ver com a tradição do futebol brasileiro. As pessoas se sentiram excluÃdas também nos estádios. De modo que a chave não é econômica. Ela é fundamentalmente polÃtica e cultural.
O atual cenário de manifestações pode determinar as eleições e a sucessão presidencial ou não?
Certamente terá influência. Ainda não há como saber qual será. Agora, a candidatura da Marina Silva certamente será bafejada por esse tipo de movimento, porque isso tem muito a ver com a cultura que ela representa. Basta ver o próprio nome do partido: Rede. Isso não quer dizer que ela vá ganhar as eleições. O futuro a Deus pertence e ele está para ser criado por nós agora. O fato é que essa forma de administração da questão social assimétrica, de cima para baixo, através de polÃticas de cooptação, levou a esse descalabro, a essa distância entre o Estado e a sociedade e a essa destituição do papel dos movimentos sociais tradicionais. Basta ver a situação da UNE, que assistiu a tudo isso de camarote, olhando de binóculo esses acontecimentos.
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