Tal como hoje, também em 11 de setembro de 2001 me encontrava em Nova York. Indo para o trabalho naquela manhã, vi uma das duas torres em chamas. Pensei que fosse um incêndio e, de um telefone público, liguei para minha mulher, que estava na Itália. Enquanto falávamos ao telefone, veio o segundo avião. Como muitos outros, fui quase até as torres para ver e entender o que estava acontecendo. Ninguém pensava que fossem entrar em colapso. Quando aconteceu, começamos todos a correr para o norte, com a nuvem de cinza e pó que nos recobria e o terreno que parecia se abrir sob os pés, como durante um fortÃssimo terremoto. Fui para o escritório, como muitos outros. E ali passei o meu 11 de setembro, diante de um computador que perdera a conexão da internet e de um telefone por muito tempo mudo. Tentando compreender algo que era incompreensÃvel. Desejando uma normalidade que não era mais possÃvel.
Nas horas e nos dias sucessivos, aquela Nova York, violada e ferida, reuniu-se nas vigÃlias; nas longas filas para doar o sangue ou se oferecer como voluntária para as escavações no Marco Zero; nas noites transcorridas com olhos nos olhos, sem dizer palavra; no desejo de retornar a um cotidiano já impossÃvel. Nova York se reergueria rapidamente dos atentados, mais rapidamente do que se acreditava. Com algumas partidas memoráveis, os Yankees chegaram à s World Series e quase as venceram, entusiasmando também aquela parte de Nova York que os odeia como só o time de beisebol mais rico, arrogante e vitorioso pode ser odiado. O prefeito Rudy Giuliani abandonou a pose de xerife e surpreendeu a todos pela eficiência e dignidade com que administrou o pós-11 de setembro. No Natal, as ruas, os hotéis e as lojas estavam (ou pelo menos pareciam) novamente cheios.
No entanto, para Nova York, o 11 de setembro adquiriu um significado diverso em relação ao resto da América e de quem então a dirigia. É errado dizer, como frequentemente se diz, que Nova York não é a América. Porque Nova York é, mais do que qualquer outra cidade, a América na sua inteireza: as mil Américas mutantes, que fizeram e continuam a fazer esta América. E, no entanto, aquele 11 de setembro em parte afastou Nova York do resto do paÃs. O 11 de setembro foi vivido diversamente, e a memória daquele evento construÃda através de processos e mecanismos próprios. Todo nova-iorquino, de fato, traz consigo uma recordação pessoal, Ãntima, do 11 de setembro. Eis por que em Nova York a tonitroante retórica nacionalista e quase imperial que caracterizou a reação da administração Bush foi vivida por muitos como uma violência: uma violação desta intimidade; uma banalização daquilo que acontecera; uma instrumentalização do seu significado. A poucos satisfez o presidente Bush a berrar: "USA! USA!" sobre as ruÃnas do World Trade Center, abraçado a um bombeiro que com dificuldade continha o embaraço. Poucos compreenderam como, a partir do Marco Zero, podia-se terminar imprevistamente no Iraque. Nas eleições presidenciais de 2004, só 22% dos nova-iorquinos votaram em Bush (seu adversário Kerry superou 73%). Em Manhattan, Kerry obteve 82% dos votos, Bush 17%.
Hoje, não parece ser outra a reação à inevitável torrente de palavras e imagens que acompanha o décimo aniversário daquele dia dramático. Uma amostra destas memórias nova-iorquinas se encontra num esplêndido projeto de história oral promovido pela Universidade de Colúmbia, baseado em centenas de entrevistas com nova-iorquinos que contam sua experiência daquele 11 de setembro. Narrativas diversas de uma cidade-mosaico, rica e diversificada como é Nova York. Narrativas nas quais não falta a vontade de revanche ou mesmo a ânsia de vingança: contra Bin Laden, Al Qaeda, à s vezes todo o Islã. Mas nas quais, à s vezes abertamente, à s vezes sub-repticiamente, manifesta-se de modo claro a divergência com a narrativa oficial e pública do evento e do seu significado. E é a persistência, quando não precisamente a consolidação, deste contraste entre memória pública e memórias privadas o que surpreende hoje. Nova York parece viver com sóbrio e nobre sofrimento este aniversário. Como um necessário ato de memória, coletiva e individual. Como sÃntese de lembranças Ãntimas e dolorosas.
Em Nova York não se celebra hoje a grandeza do paÃs e das suas liberdades. Não se celebra, porque esta grandeza parece estar em discussão e porque quem com ela todo dia enche a boca - um mundo polÃtico faccioso, litigioso e muito pouco responsável - parece ter perdido qualquer credibilidade. Sobretudo não se celebra porque, para todo nova-iorquino, o 11 de setembro é, e está destinado a ser, algo próprio, Ãntimo e pessoal, de que ninguém mais pode se apropriar indevidamente nem pode se permitir instrumentalizar ou banalizar.
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Mario Del Pero é professor de História dos Estados Unidos e de PolÃtica Externa Estadunidense, na Universidade de Bolonha. Escreveu, entre outros, Libertà e Impero (2008) e The Eccentric Realist (2009). Artigo originalmente publicado em Italianieuropei.