Gramsci e o Brasil associa-se a LÂ’Unità , o jornal fundado por Antonio Gramsci, para comemorar os vinte e cinco anos da morte de Enrico Berlinguer (1923-1984), um dirigente comunista "tão distante e tão perto de nós". Por ocasião da sua morte, que abalou profundamente os italianos e gerou algumas das maiores manifestações de massas do pós-guerra naquele paÃs, assim se expressou Alberto Moravia: "Compartilho e subscrevo as palavras do presidente da República, Sandro Pertini. Não é justo, não devia ser atingido um justo". Para além destas palavras de Moravia, que sublinham, sinteticamente, a estatura moral do morto, cabe lembrar que o mundo de Berlinguer era o do comunismo histórico, irremediavelmente terminado. Mas neste mundo Berlinguer introduziu seu pensamento herético e fortemente inovador, baseado no reconhecimento de que o horizonte moderno da polÃtica é constituÃdo pelas formas da democracia, para ele, como para nós de Gramsci e o Brasil, um valor universal; um valor que, por definição, não comporta condicionamentos ou restrições de qualquer tipo. Pode não ser condição suficiente, mas certamente é condição necessária para qualquer boa reconstrução do conceito de socialismo ou comunismo.
Nestes vinte e cinco anos que nos separam do trágico desaparecimento de Enrico Berlinguer, tudo mudou em torno de nós. O mundo, a Europa, a Itália conheceram transformações enormes que nos trazem um cenário inteiramente diferente daquele em que o mais amado secretário do PCI viveu seu extraordinário percurso polÃtico e humano.
E no entanto voltar a refletir sobre a ação e o pensamento de um dos dirigentes que mais marcaram a história da esquerda e da democracia italiana é ainda mais útil, porque o nosso tempo nos traz temas sobre os quais Berlinguer teve intuições preciosas e precoces. Quando o secretário do PCI falou de "austeridade", não havia na nossa linguagem esta outra palavra com a mesma terminação - "sustentabilidade" -, que se tornou hoje de uso cotidiano.
Era a metade dos anos 1970, o tempo da primeira grande crise do petróleo, que levava os paÃses produtores de petróleo a reivindicar uma mudança dos termos de troca e das relações de mercado e de investimento com os paÃses industrializados e consumidores. Muitos consideraram, naquele momento, a austeridade berlingueriana com desconfiança, quase como se fosse uma forma de rejeição da modernidade. Na realidade, Berlinguer compreendeu muito antes dos outros que uma concepção do desenvolvimento unicamente como ininterrupta produção de bens e de mercadorias está destinada a chocar-se com os limites intransponÃveis da natureza e do destino humano. E que fundamentar o desenvolvimento em bases sustentáveis - demográficas, ambientais, sociais - é condição para que o crescimento seja capaz de produzir benefÃcios dos quais possa desfrutar uma vasta humanidade, sem prejudicar as oportunidades e o destino das gerações futuras.
"Governo mundial" foi outra expressão original que Berlinguer cunhou, querendo sublinhar o desgaste do sistema bipolar e a necessidade de um novo equilÃbrio polÃtico do planeta, não mais governável com base nas relações de choque, competição ou confronto entre URSS e Estados Unidos.
Mesmo tal expressão podia parecer utópica - e não faltou quem acusasse o lÃder do PCI de abstrações e visões cheias de veleidade -, quando, ao contrário, Berlinguer antecipava assim um tema que hoje a crise da globalização nos coloca de modo incisivo: a necessidade de uma governance global e de um multipolarismo responsável diante de um mundo cada vez mais único e interdependente, que não pode ser sustentado só pelas soberanias nacionais e suas mútuas relações.
É ainda uma das afirmações mais conhecidas e fortes de Berlinguer - a "democracia como valor universal" - que se mostra hoje vigorosamente atual.
Se, no passado, tal afirmação tinha o significado forte e explÃcito de contestar o comunismo soviético e seu caráter opressivo, hoje a "questão democrática" revela-se de extraordinária atualidade, numa sociedade em que os poderes das nações se esvaziam, os cidadãos sentem como mais incertos os seus direitos, a polÃtica e as instituições surgem fracas e inadequadas, e, até mesmo, crescente é o deslocamento de poderes, decisões, recursos: de instituições legitimadas pelos cidadãos - "democráticas", precisamente - para lugares e instâncias extrainstitucionais, ao mesmo tempo que se afirmam concepções populistas e plebiscitárias da polÃtica e da direção.
E, por fim, como deixar de ver a extraordinária atualidade de uma concepção da polÃtica não separada de princÃpios éticos e regras morais?
Por ter evocado a "questão moral", Berlinguer foi muitas vezes acusado de sectarismo e moralismo. E ainda hoje há quem atribua à evocação dessa questão feridas dilacedoras e não curadas.
Em realidade, em tal expressão havia não apenas a consciência da degradação a que o tecido polÃtico e institucional estava perigosamente exposto, mas sobretudo a firme convicção de que a credibilidade da polÃtica e de quem a representa consiste na transparência, na honestidade, no respeito à autonomia das instituições, na observância das leis e na adoção de comportamentos que não violem essenciais princÃpios éticos e morais em que todos os cidadãos se reconhecem. Valores e conceitos cuja necessidade podemos bem avaliar num tempo em que a polÃtica italiana nos traz todo dia imagens bastante deprimentes.
Refletir sobre Berlinguer, portanto, não em razão de uma nostalgia anti-histórica, mas para aproveitar suas intuições e suas reflexões num tempo presente que, mais uma vez, requer da esquerda e dos reformistas que não tenham medo - como Berlinguer não teve - de percorrer caminhos inexplorados e navegar em mar aberto.
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Piero Fassino, expoente do antigo PCI e, a partir de 2001, secretário nacional dos Democráticos de Esquerda (DS). Especializado em temas de justiça e polÃtica exterior, foi ministro nos Governos italianos chefiados por Massimo D'Alema e Giuliano Amato. Atualmente, é deputado do Partido Democrático.