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"Contabilidade criativa", "pedaladas" e contas públicas

Cláudio de Oliveira - Maio 2017
 

Em 2012, o Brasil tomou conhecimento da "contabilidade criativa", artifício usado pela então presidente Dilma Rousseff para maquiar o desequilíbrio das contas do governo.

Em setembro daquele ano, o jornal O Estado de S. Paulo noticiava que "um decreto e duas portarias publicados nos últimos dias permitiram que a Caixa Econômica Federal e o BNDES transferissem R$ 4,5 bilhões aos cofres do Tesouro Nacional em agosto, a título de resgate antecipado de títulos que venceriam em 2027 e 2035. Esses títulos foram usados para que os dois bancos públicos pagassem antecipadamente dividendos à União que, na prática, só deveriam ser recolhidos no ano que vem [2013]" [1].

A manobra levou o Tribunal de Contas da União a aprovar as contas de 2012 de Dilma Rousseff com um total de 22 ressalvas. A Folha de S. Paulo informava que, segundo relatório do TCU, "R$ 22,4 bilhões foram levantados de forma ‘extraordinária e atípica’" [2]. A antecipação de dividendos das estatais e dos bancos públicos para cobrir o déficit continuou nos anos seguintes.

Em 2015, O Estado de S. Paulo voltava a informar que "o maior pagador de dividendos é o BNDES, que remeteu R$ 6,99 bilhões para o Tesouro em 2013 e R$ 9,07 bilhões no ano passado [2014]. A Caixa pagou dividendos de R$ 4 bilhões em 2013 e de R$ 4,35 bilhões em 2014. O Banco do Brasil cortou os dividendos pagos ao Tesouro, de R$ 3,45 bilhões em 2013 para R$ 2,41 bilhões em 2014. Nos mesmos anos, a Petrobras aumentou o pagamento de dividendos de R$ 1,01 bilhão para R$ 2,01 bilhões. Os Correios [...] pagaram R$ 401,1 milhões em 2013 e nada em 2014. Também a Eletrobrás e o Banco do Nordeste do Brasil reduziram a distribuição em 2014. Sem os dividendos, o déficit do governo central teria sido muito maior" [3].

"Pedalada" 1: restos a pagar

No início de 2014, surgiu outro termo na contabilidade oficial: as "pedaladas fiscais", por denúncia da ONG Contas Abertas:

Outra forma de manobrar o orçamento para obter resultados fiscais melhores é o adiamento de desembolsos, criando-se "restos a pagar". [...] No final de 2013 e início de 2014, o Contas Abertas percebeu um volume muito elevado de restos a pagar. Assim, esse tipo de "restos" somou R$ 33,5 bilhões inscritos em 2014. Comparativamente ao ano anterior, o crescimento verificado foi de 27% [4].
Segundo a ONG, o TCU já havia identificado as "pedaladas" nas contas de 2012:
O relatório de 2013 destacou que no encerramento do exercício houve a inscrição de R$ 138,4 bilhões de despesas primárias em restos a pagar para o ano posterior. O Tribunal ainda reforçou que o montante de despesas inscritas em restos a pagar tem aumentado consideravelmente nos últimos anos.

Conforme levantamento do Contas Abertas, os restos a pagar passaram de R$ 95,1 bilhões em 2009 para R$ 227,8 bilhões em 2015 [5].

De acordo com o relatório de 2016 do Banco Central, elaborado por determinação do TCU e publicado pela Folha de S. Paulo, os restos a pagar passaram da casa dos milhões para a dos bilhões:

Entre 2001 e 2008, o impacto das pedaladas na dívida pública oscilou, sem tendência definida, entre 0,03% e 0,11% do PIB; a partir de 2009, o crescimento é contínuo, até chegar ao pico de 1% do PIB [6].
"Pedalada" 2: atraso aos bancos públicos

Além da prática de empurrar para o ano seguinte um grande volume de despesas, em 2014 verificou-se o pagamento de programas sociais com recursos dos bancos públicos, motivado pelo atraso dos repasses pelo Tesouro Nacional:

Em junho daquele ano [2014], no entanto, as "pedaladas" atingiram o ápice quando a Caixa bancou com recursos próprios o Bolsa Família, o Seguro Desemprego e o Abono Salarial. O Banco do Brasil fez o mesmo para equalizar as taxas de juros do financiamento agrícola. Para o FGTS sobrou arcar com o Minha Casa, Minha Vida enquanto o BNDES cobria custos do Programa de Sustentação de Investimento. A Caixa esperou seis meses para ser ressarcida em R$ 1,7 bilhão, e só recebeu quando o assunto se tornou público [7].

Do azul para o vermelho

No orçamento para 2014, Dilma Rousseff havia prometido um superávit de R$ 80,7 bilhões [8]. Porém, uma vez reeleita e sem mais recursos para continuar com a "contabilidade criativa" em razão dos prejuízos nas estatais, o superávit virou um déficit de R$ R$ 32,53 bilhões, ou 0,57% do PIB. Com o novo ministro da Fazenda Joaquim Levy se negando a continuar com as "pedaladas", a realidade da contas públicas veio à tona: o déficit subiu para R$ 111,24 bilhões, ou 1,9% do PIB, em 2015 [9].

Em 2016 o rombo das contas governamentais voltou a crescer: chegou aos R$ 155,791 bilhões e alcançou 2,47% do PIB [10]. Para 2017, pode chegar a R$ 197 bilhões, apesar do governo prometer déficit R$ 139 bilhões. Para 2018, o governo tem como meta um déficit de R$ 129 bilhões [11].

A necessidade do ajuste

Na sua primeira eleição em 2010, a candidata Dilma Rousseff tinha consciência da necessidade de equilibrar as contas públicas, diminuir os gastos correntes para reduzir a relação dívida/PIB e, assim, baixar a taxa de juros e ampliar o investimento público em infraestrutura, medidas fundamentais para um crescimento econômico sustentado. É o que revelou a reportagem publicada pelo Valor Econômico, às vésperas do pleito:

Para deixar claro seu compromisso com o equilíbrio das contas públicas a médio e longo prazo, Dilma pretende anunciar, se for eleita no domingo, meta de redução da dívida pública líquida para 30% do PIB, em 2014.

[...] Hoje, a dívida está em 42% do PIB. Para que chegue a 30% em quatro anos, o governo terá que aumentar o superávit primário nesse período para algo entre 3,3% e 3,5% do PIB - no ano passado, o resultado foi de apenas 2% do PIB e, este ano, pode fechar em 3,3% graças à antecipação de receitas da exploração futura do petróleo da camada pré-sal.

"Chegar a 30% permite que tenhamos juros [básicos] muito próximos das taxas internacionais [em 2014]", disse Dilma durante a campanha. A candidata tem outra obsessão na área fiscal que a distingue do que fez o governo Lula, especialmente no segundo mandato: ela quer manter a evolução dos gastos correntes abaixo do crescimento do PIB. "A Dilma sabe que gasto corrente atrapalha investimento", sustenta um importante conselheiro da candidata.

Também ao contrário de Lula, Dilma se preocupa com os gastos do governo com pessoal e aposentadorias. [...] A candidata, se for eleita, vai acionar sua base de apoio no Congresso para aprovar o projeto de lei que limita a evolução dos gastos com pessoal nos próximos dez anos.

Dilma pretende fazer, também, mobilização para passar a regulamentação da reforma da previdência do funcionalismo aprovada em 2003. Sua preocupação é com a explosão do déficit dessas aposentadorias, que, em 2010, deve chegar a R$ 50 bilhões, igualando-se ao rombo da Previdência Social [12].

O jornal informava ainda que "a equipe de Dilma pretende também mexer no tempo de contribuição mínimo para obtenção de aposentadoria pelo INSS, hoje de 35 anos" [13].

A presidente tomou posse em janeiro de 2011, porém o seu ministro-chefe da Casa Civil, Antônio Palocci, principal defensor do equilíbrio da contas públicas, deixou o governo em junho, tragado por denúncias de enriquecimento ilícito. Pressionada pelo seu próprio partido e por sua base de sindicatos do setor público, ela não entregou muito do que prometera na campanha. Conseguiu apenas regulamentar em 2013 o fundo dos servidores, criado na reforma previdenciária de Lula dez anos antes.

Para evitar que o rombo aparecesse e o Brasil perdesse o grau de investimento das agências internacionais de avaliação de riscos, a alternativa encontrada pelo secretário do Tesouro, Arno Augustin, foi lançar mão da "contabilidade criativa" e das "pedaladas fiscais".

Mas a rápida trajetória ascendente da dívida pública provocou a falta de confiança do empresariado nacional e a queda significativa do investimento privado. A expansão do PIB caiu de 7,65% em 2010 para 1,8% em 2012; chegou a 0,5% em 2014, até a contração de -3,8% em 2015 e de -3,6% em 2016.

Em seu site, a ONG Contas Abertas informava:

No dia 17 de janeiro do ano passado [2014], a entidade encaminhou denúncia ao Ministério Público de Contas junto ao Tribunal de Contas da União, com o intuito de que o Tribunal pudesse quantificar o real superávit primário de 2013 e tomar as medidas cabíveis em relaçaõ às manobras orçamentárias que o governo federal vinha utilizando, sobretudo no final de 2013.

[...] Apesar do Contas Abertas ter sido a primeira entidade a denunciar as pedaladas, incluindo o abrupto crescimento dos restos a pagar, o atraso nos repasses a estados e municípios e a enxurrada de ordens bancárias emitidas nos últimos dias do ano para só serem sacadas no exercício seguinte, foi o competente procurador do Ministério Público de Contas junto ao TCU, Júlio Marcelo de Oliveira, que provocou a Corte de Contas em abril tendo como mote o fato dos bancos estarem financiando o Estado, o que é proibido pela Lei de Responsabilidade Fiscal. Relatório do TCU estimou em R$ 40 bilhões o montante das pedaladas via bancos públicos. A decisão do TCU de rejeitar as contas de 2014 confirmou os valores das pedaladas, mas também apontou que o total das distorções chegou a R$ 106 bilhões. A contabilização também revelou o não registro pelo Banco Central de dívidas contraídas e omissão de despesas primárias. Também foi constatada a edição de decretos pela presidente da República para a abertura de créditos - no momento em que a arrecadação estava em queda - usurpando competência do Congresso Nacional. Agrava os fatos 2014 ter sido ano eleitoral [14].

Com base nesses dados, somados às denúncias de corrupção reveladas pela Operação Lava Jato, os juristas Hélio Bicudo e Miguel Reale Jr. e a advogada Janaina Paschoal entraram com um pedido de impeachment na Câmara dos Deputados, aceito pelo seu então presidente, o deputado Eduardo Cunha, que dele retirou as acusações de desvios na Petrobras. O impeachment foi aprovada pela Câmara em abril de 2016 e confirmado pelo Senado em setembro.

A presidente Dilma Rousseff deixou o cargo, mas a situação deficitária das contas ficou, mesmo com as tentativas tardias de equilíbrio promovidas pelos ministros Joaquim Levy e Nelson Barbosa. A Lei do Teto dos Gastos e a Reforma da Previdência, propostas pelo governo do presidente Michel Temer, são ajustes pelo lado das despesas. Mas o lado da arrecadação não deve ser esquecido. Uma reforma tributária progressiva também deveria ser colocada em pauta.

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Cláudio de Oliveira é jornalista e cartunista.

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Notas

[1] Governo manobra contas públicas com antecipação de dividendos de 2013, O Estado de S. Paulo, 5 set. 2012.

[2] TCU critica "contabilidade criativa" do governo federal, Folha de S. Paulo, 30 mai. 2013.

[3] A política de pagamento de dividendos das estatais, O Estado de S. Paulo, 5 fev. 2015.

[4] Da contabilidade criativa às "pedaladas fiscais", Contas Abertas, 9 out. 2015.

[5] TCU já alertou governo sobre "pedaladas" antes de 2014, Contas Abertas, 27 jul. 2015.

[6] Pedalada dispara sob Dilma, mostra relatório do BC, Folha de S. Paulo, 6 abr. 2016.

[7] Da contabilidade criativa às "pedaladas fiscais", Contas Abertas, 9 out. 2015.

[8] Governo Dilma registra déficit de R$ 17,2 bi em 2014, pior resultado desde 1997, O Estado de S. Paulo, 29 jan. 2015.

[9] Brasil só voltará a ter superávit primário em 2020, prevê FMI, G1, 13 abr. 2016.

[10] Déficit primário do setor público atinge 2,47% do PIB em 2016, Valor Econômico, 31 jan. 2017.

[11] Governo eleva previsão de déficit de 2018 para R$ 129 bilhões, Folha de S. Paulo, 7 abr. 2017.

[12] Governo Dilma projeta política fiscal mais dura, Valor Econômico, 29 out. 2010.

[13] Dilma planeja superávit de 3% para reduzir dívida, Valor Econômico, 13 set. 2010.

[14] Da contabilidade criativa às "pedaladas fiscais", Contas Abertas, 9 out. 2015.

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Cláudio de Oliveira é jornalista e cartunista

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Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

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