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A história absolvida

Luiz Werneck Vianna - Dezembro 2002
 

Luiz Werneck Vianna é autor de uma obra no campo das ciências sociais que gira em torno de questões caras ao Brasil contemporâneo: democracia, modernidade, justiça, liberdade. Uma obra polemista, urgente, cujo alcance intelectual e político transformou seu autor em um importante intérprete da história e da vida política republicana brasileira. Professor do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj), Luiz Werneck Vianna é também coordenador do Instituto Virtual A Democracia e os Três Poderes no Brasil e presidente da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs). Nessa entrevista, que contou com a participação de Maria Alice Rezende de Carvalho, Werneck Vianna fala de suas esperanças democráticas para o Brasil e debate as alternativas de construção de uma República que precisa ampliar o acesso aos frutos sociais gerados pela introdução da democracia política no país.

(Entrevista concedida a Heloísa Maria Murgel Starling e a Wander Melo Miranda)

Diante dos últimos acontecimentos políticos a primeira pergunta é inevitável: o que significa a eleição de Lula para o Brasil?

Acho que essa eleição sobretudo absolveu a nossa história. Eu vou tentar explicar por quê. Uma boa parte dos nossos pensadores, da nossa imaginação histórica e política, sempre trabalhou com a idéia da inviabilidade do país, da nossa má formação por termos recebido como legado de Portugal um Estado atrasado, autocrático, com elementos quase orientais. Esse é o sentido da obra de autores como Tavares Bastos, Capistrano de Abreu, Manoel Bonfim, e, recentemente, a de Raymundo Faoro, entre tantos outros que trabalharam nesta direção. Porque consideravam nossa sociabilidade congenitamente mal estruturada, fragmentada, esses autores interpretaram a trajetória brasileira como uma história sem redenção possível. Uma história sem povo. Vem daí, por exemplo, a fabulação de Manoel Bonfim sobre a Independência como uma solução por cima, como se a alternativa política possível para o país, tal como no projeto de José Bonifácio, não fosse a permanência da casa de Bragança como dinastia reinante no Brasil. Nossos males teriam, então, início com a transferência do Estado patrimonial português, que, saltando sobre o oceano e se instalando do lado de cá do Atlântico, teria criado uma história que, na verdade, apenas reiteraria a anterior. Uma Independência que, portanto, não rompeu com as estruturas econômicas coloniais, como a da escravidão, cuja abolição também resultaria de um movimento das elites, fórmula recorrente com que sempre se teria impedido a sociedade de tomar o seu destino em suas mãos. Assim, se a Independência nos trouxe o liberalismo, esta idéia, aqui, estaria fora de lugar, máscara que encobriria a natureza efetiva do sistema de dominação vigente. E se a Abolição emancipou o trabalho, o seu movimento nasceria sob o estigma de ter se originado nas elites intelectuais do liberalismo, sem provir de uma insurreição dos homens submetidos à escravidão.

E essa é uma fabulação que se repete nas interpretações sobre a República, interpretações sempre marcadas por forte negatividade, não é mesmo?

As interpretações sobre a proclamação da República nunca se esquecem de lembrar o testemunho famoso de um contemporâneo: "e o povo [a] assistiu bestializado", uma frase que traduz uma desqualificação da mudança ocorrida na ordem jurídica e política que sucedeu ao Império. O mesmo processo de desqualificação se repete nas análises da Revolução de 1930 e, em particular, sobre o período do Estado Novo (1937-1945), que nos trouxe a moderna ordem burguesa. Em grande parte, esse é o tom que prevalece na nossa imaginação social e política, o tom, por exemplo, do excesso e da melancolia em Paulo Prado - as grandes esperanças, por não se escorarem em supostos realistas, ao nos levarem aos excessos da imaginação e do comportamento, logo que se frustram, nos deixariam no torpor da melancolia.

Enfim, o Brasil não estava destinado a entrar na história.

Exato. Vítima de si mesmo, quer pela natureza recessiva do traço original característico do seu Estado, quer pela incompletude da sociedade nascida em meio à escravidão, uma sociedade assentada sobre a ralé dos quatro séculos de que nos fala Maria Sylvia de Carvalho Franco no livro Homens Livres na Ordem Escravocrata. De certo modo, vítima, também, de uma intelligentsia sonhadora, cultivando mitos carismáticos, milenaristas - a idéia da necessidade do ato de fundação que viesse a tornar povo a composição heteróclita da sociabilidade. Em suma, negação da história empírica e efetiva em nome de um ideal de fundação a cavaleiro de uma ruptura revolucionária.

Uma intelligentsia dotada do impulso de intervir na cena política, mas sem muita convicção ao desenhar um projeto viável de futuro para a nação brasileira.

Descrença em tudo, descrença como concepção do mundo. Embora Joaquim Nabuco tenha afirmado que a Abolição da escravidão já punha em perspectiva a República, e embora o nascimento dessa República tenha trazido alguns personagens novos que logo marcaram a história do país com muita força, especialmente a partir dos anos de 1910 - os operários, os empresários, os artistas -, a nossa história era vista sempre em compartimentos isolados que não estabeleciam conexão, que não faziam sentido entre si.

A própria intelligentsia faz parte ativa da cena política dessa República, não é?

Especialmente os homens da verdadeira primeira geração republicana brasileira, os homens nascidos na passagem do século 19 para o 20. Podemos fazer uma contagem a partir de 1898, uma contagem que inclui Luis Carlos Prestes e Gilberto Freyre (1900), Sérgio Buarque de Hollanda, Carlos Drummond de Andrade e Juscelino Kubitschek, todos de 1902, e uma lista de outros nomes tão significativos ou quase tão significativos quanto esses. Embora esses homens não se entendessem em continuidade com a geração intelectual anterior, inclusive porque começam a viver suas trajetórias pessoais em descontinuidade com ela, eles também não deixam, de alguma forma, de reiterá-la. É impossível entender, por exemplo, o tenentismo sem levar em conta Euclides da Cunha, sem entender que o positivismo, entre nós de forte pegada social, foi uma ideologia que levou a uma redescoberta do Brasil e à internalização de uma espécie de equivalente funcional do ethos puritano, dominante em uma importante fração da intelectualidade, a partir da qual se abandonou o intimismo "hipercivilizado" de um Machado de Assis e se foi ao encontro da esfera pública.

Descobriu que o Brasil não terminava na rua do Ouvidor, no centro do Rio de Janeiro, descobriu o sertão de Euclides da Cunha.

Redescobriram o Brasil no sertão. São esses homens que vão fazer seus vinte e poucos anos na década de 1920, homens que vão fazer uma "guerra de movimento" em busca das raízes da vida popular e do sentido oculto da nacionalidade. São militares, como os tenentes da Coluna Prestes, que percorrem em armas o hinterland, são musicólogos, como Mário de Andrade e Villa-Lobos, sanitaristas, indianistas como Rondon. É o momento em que uma grande onda de inovação varre especialmente o Rio de Janeiro, então Capital Federal, e é preciso pensar no que foi o Rio de Janeiro como laboratório do moderno no Brasil. Um laboratório intelectual e político em que se adensou a noção do público, instalado antes que a modernização econômica tratasse de demarcar as posições dos diferentes atores a partir dos imperativos de racionalização da vida social.

Como ocorre em São Paulo.

O Rio de Janeiro foi um laboratório do moderno em que uma emergente sociedade de massas ensaia seus primeiros passos na esfera pública, antes que o processo de racionalização tivesse tocado o Brasil a partir de São Paulo, onde, em fins do século 19, a esfera dominante já era a do mercado. O Brasil se pensa e se repensa no Rio de Janeiro com extraordinária liberdade durante os anos de 1920 e no começo dos anos 30. Esse importantíssimo movimento de militares, empresários, operários, artistas e intelectuais tem um desenlace ambíguo, complicado, no sentido de que ele perde na política e vence no campo das idéias. Foi, na realidade, um processo clássico de decapitação de lideranças de um movimento democrático, embora ainda inorgânico, com a apropriação do seu inventário de idéias a partir da década de 1930, muito especialmente a partir do Estado Novo, em 1937, pelas novas elites estatais, quando o moderno "sai" da sociedade e se deixa capturar pelo Estado.

Há nesse processo que teria ocorrido de 1937 uma "ampliação da República", não é isso?

É. Eu chamo ampliação. Ampliação da República, ampliação autoritária da República: em 1937 o Estado realiza o moderno em composição com o atraso. O exemplo maior dessa composição foi a legislação social brasileira, que teve a sua eficácia confinada ao mundo urbano, não foi estendida ao mundo rural. Tal foi o resultado da celebração do acordo entre as elites modernas e as elites oligárquicas na passagem para a modernidade industrial de massas no país - já se pode falar de massas porque o rádio já está operando, e através dele se institui uma sociedade de massas em termos de comunicação, gostos, estilos e também em publicidade. As mercadorias de consumo popular encontram no rádio seu veículo ideal.

Mas você disse que o desenlace foi ambíguo.

Esse processo de modernização conservadora autoritária, de modernização por cima, trouxe para dentro de si e incorporou esses segmentos sociais, esses setores da emergente modernidade brasileira dos anos de 1920, acabando por desmoralizar a própria instância estatal que o deflagrou. Desmoralização que lhe veio pelo autoritarismo, pelo excesso de controle que exercia sobre a vida social. De modo que esse grande momento de êxito, de mudanças, veio também com essa pesada hipoteca: o moderno não nos trouxe a liberdade, manteve a igualdade a conta gotas e ao mesmo tempo preservou o que havia de atrasado na sociedade brasileira. Basta se pensar no papel desempenhado pelas elites mineiras na composição desse moderno: Gustavo Capanema, Francisco Campos, ambos intelectuais "orgânicos" do Estado Novo e egressos do mundo da tradição.

E Rodrigo Melo Franco de Andrade.

Certamente. De modo que os melhores resultados produzidos pelo moderno ao longo do tempo, como, por exemplo, a emancipação da população servil, a criação da República, a industrialização, as conquistas dos direitos sociais, tudo isso, na verdade, a despeito da positividade que lhe é intrínseca, guardava, também, a idéia da negatividade. Em cada um desses momentos o que nossa intelligentsia procurava, sem encontrar, era a construção de um marco fundacional, um marco inaugural para o recomeço da sua história, e que viesse a lhe servir de âncora em tempos de crise, em momentos de perturbação, em momentos de inquietação. Sempre a idéia da ausência de uma idéia: a da refundação. Há pouco um sociólogo falou sobre uma metáfora que me pareceu muito interessante: a presença do mito do sebastianismo na sociedade brasileira. Estamos sempre projetados para uma saída utópica, a esperança metafísica anunciando a incompletude da hora presente. É assim que temos vivido uma história em que nós não nos reconhecemos e não gostamos que seja a nossa.

Uma história bovarista como indicou Sérgio Buarque de Hollanda?

Sim, bovarista. É verdade, porém, que antes de 1964 havia um ajustamento melhor entre o ator e a sua história. O ator do pré-64 se via mais confortável com a sua história do que o que vai emergir no período pós-64, sobretudo porque a questão nacional era uma questão forte na sociedade e nucleava grande parte da sua intelligentsia e dos atores sociais mais relevantes, como o sindicalismo, por exemplo. Todos eles se referenciavam pela questão nacional, e nessa, obviamente, cabia centralidade ao papel do Estado. Com isso era possível pacificar a percepção que se tinha do Estado - sobretudo, a percepção que se tinha do Estado que foi formado no Império, do Estado de 1930 e até do Estado Novo. Essa linha de continuidade era, então, percebida em chave positiva, e sua conclusão lógica deveria ser a da revolução nacional-popular, que, na percepção da época, se avizinhava. Os grandes personagens evocados ou as duas grandes tradições evocadas compatibilizavam isso: Getúlio Vargas, de um lado, e Luís Carlos Prestes, do outro.

O golpe militar de 1964 rompeu com essa continuidade ao promover um esgotamento do projeto nacional de passagem para o moderno?

1964 representou um corte muito grande nesse movimento, um corte que aprofundou aquele diagnóstico com o qual eu comecei a narrar esse dissídio entre nós e a nossa história. Não é à toa que Os donos do poder, de Raymundo Faoro, um livro escrito em 1958, e que surge sem maiores repercussões no debate público e mesmo no debate acadêmico do período, vai se tornar, progressivamente, nos anos pós-64, a grande versão interpretativa sobre o Brasil, a porta de entrada nesse diagnóstico negativo sobre o Estado. Também não é à toa que vão surgir, a partir de 1964, interpretações negativas não só sobre o Estado, mas, preferencialmente, sobre as relações do Estado com a sociedade, como ocorre na teoria do populismo, teoria que abasteceu o primeiro núcleo de intelectuais formador do PT.

Mas o PT, o Partido dos Trabalhadores não teria surgido também na sua origem com uma proposta de refundação, sobretudo no que diz respeito às relações entre a sociedade e o Estado?

Esse dissídio entre nós e a nossa história não faz senão se agravar nas décadas seguintes ao golpe de 1964. A formação do PT - e, imediatamente antes dela, o novo sindicalismo do final da década de 1970, de onde saiu Luís Inácio Lula da Silva - expressa, mais do que qualquer outro indicativo, o abismo que começou a separar a nossa sociedade, a essa altura uma sociedade de massas, de sua história. Tudo estaria então por refazer: uma nova Abolição, uma nova República, um novo Estado. Os exemplos mais comuns são encontrados na bibliografia que esse grupo criou, especialmente aquela destinada ao público de massas, ao sindicato, ou mesmo aquela destinada às escolas elementares: encontra-se lá a visão corrosiva sobre a nossa história, sobre as nossas instituições. Encontra-se também a idéia da impotência para mudar, salvo a partir de rupturas revolucionárias. Contudo, e aí está a grande novidade em 2002, vai ser por dentro das instituições que essa sociedade, sempre desajustada da história do país, encontrou o caminho de levar ao governo um partido de esquerda.

E o que faz para vencer?

Para vencer, essa sociedade, particularmente a sua esquerda organizada, vai tirando da sua frente e de dentro de si os obstáculos que se antepunham à sua vitória. Foi um verdadeiro processo de conversão de uma legião de descrentes em nossa história e em nossas instituições! E vejam: esse processo de conversão é feito em uma velocidade extraordinária, em poucos meses se fez todo um processo pedagógico.

E massivo.

Massivo, mas que parecia reclamar décadas! Com isso, com a realização dessa pedagogia, o Brasil tem a sua história absolvida: era possível um homem de extração popular chegar à presidência da República, um homem do mundo sindical, um homem vindo de um partido de trabalhadores.

Tudo isso sem rupturas com a ordem democrática.

Sem rupturas. A história está absolvida. A história teve êxito. A conclusão absolveu o processo - uma história interpretada como desastre, sem abandonar a sua linha de continuidade, admite a mudança afortunada, revendo-se com um olhar reparador a Independência, a Abolição, a República, o Estado Novo, a presidência de Juscelino Kubitschek, a conquista do Oeste, a própria expansão das forças produtivas durante a ditadura militar, esta última objeto de uma clara referência positiva por parte do candidato Lula.

A Constituição de 1988... e Lula.

A grande virada se deu quando a democracia social foi obrigada a se casar com a democracia política. Esse era o grande divórcio que paralisava a sociedade brasileira.

Ao contrário do que está ocorrendo nesse momento com a história da Argentina.

Se olharmos o Brasil e a Argentina por esse ângulo, descortinam-se paisagens opostas, paisagens de uma coloração inteiramente diversa. Aqui, a luz, a luz alegre da primavera; lá, os tons sombrios - embora, olhando bem e com cuidado, a situação da Argentina, em muitos aspectos, continue sendo bastante melhor do que a nossa.

Sem dúvida.

A situação brasileira é melhor apenas do ponto de vista da interpretação, do ponto de vista da percepção. Do ponto de vista da cognição, inclusive de massas, houve no Brasil uma mudança extraordinária protagonizada pelo setor que vem de baixo da sociedade e por uma esquerda que se descasava, se dissociava, dessa sociedade. Ao contrário do que se apontava, essa é uma história de acumulações, e foi sobre isso que, afinal, estabeleceu-se consenso.

Acumulações progressivas?

Progressivas.

É esse acúmulo que vai permitir, hoje, no discurso do PT, a permanência de propostas que estavam sendo de alguma maneira desenhadas ao final da ditadura militar por alguns intelectuais como você, por exemplo, e por uma estrutura que vem da esquerda do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB)?

Eu não tenho crédito. A história não conhece créditos nem cobrança. Apenas estou tentando ver o que se passou.

Não sabemos se isso é o começo do que se passou ou se é o fim.

Isso é começo!

Mas é começo de quê? Na sua opinião isso é o começo de alguma coisa diferente, apesar dessa história cumulativa. Mas é começo de quê?

Eu acho que, hoje, tendo a sociedade absolvido essa história, a névoa que nos vinha do passado e prejudicava a nossa visão se dissipou. Evidentemente, existem as dificuldades da hora presente que são muito poderosas, mas percursos que antes foram realizados sem sucesso podem ser retomados agora. Sem estigmas, sem manifestações idiossincráticas, como ocorre com o tema do pacto social, um tema que não necessariamente precisa se cumprir na sua arquitetura ideal, mas que está se cumprindo, de algum modo, ao aproximar os personagens do mundo da produção, do mundo do capital e do mundo do trabalho. Esses mundos já se aproximaram com Getúlio Vargas nos anos de 1930, e isso vai ser realizado, mais uma vez, no interior do Estado, tal como foi realizado no contexto histórico de Vargas e de Juscelino Kubitschek. Repare bem: esses momentos deixaram de ser demonizados por nós hoje e isso acontece porque a história ganhou um sentido que ela não tinha antes, um sentido trazido pela vitória de Lula, tal como ela se deu, um sentido que antes era negado a ela.

Mas esse não poderia ser o nacional-popular entrando em cena de novo?

Não. Não creio, não creio.

Evidentemente, essa é uma retomada difícil em virtude do contexto de globalização em que vivemos. Mas não tem algo como a volta do nacional-popular?

Não creio. Mas é difícil pensar sobre isso. Ao mesmo tempo em que esse é um processo que se dá no interior de uma fronteira nacional e no interior de um território muito circunscrito, é, também, um processo que opera com uma base de critérios, valores e dimensões universalistas. O Brasil reintegrado na sua história, tal como já está, não é mais um personagem apenas da sua história - é um personagem, em primeiro lugar, do nosso continente e é um personagem do mundo. Parece grandiloqüente mas eu acho que não é. O mais novo filme do Almodóvar, Fale com Ela, um filme belíssimo por sinal, nos acena com a importância cultural do Brasil, um aceno que não é acidental, que não deriva apenas da história pessoal do autor, mas é algo que existe independentemente dele, pois já indica um reconhecimento da nossa projeção no mundo.

Mas você acredita que esse aceno vem em conseqüência do campo cultural? O Brasil tem essa importância continental e mundial por conta de sua produção cultural?

Acho que também por isso. Mas acho que essa importância se expressa também pelo mercado. O Brasil é um dos grandes produtores de grãos do mundo, nossa indústria é uma indústria sofisticada e, nesse caso, o Brasil é jogador. Veja: a União Européia, hoje um jogador extraordinariamente relevante, no momento de sua constituição tratou de remover todos os obstáculos, inclusive os que pareciam intransponíveis. E esses obstáculos foram removidos num processo de criação política sem paralelo na história. A União Européia realizou a obra de Napoleão: a Europa foi unificada sem guerra, pela diplomacia, pela política e pela economia - uma só moeda para toda a Europa.

E como o Brasil se transforma em jogador relevante nesse cenário?

O Brasil está entre dois mundos. A União Européia tem percebido o papel que nós podemos desempenhar, o que faz com que haja uma possibilidade de jogo. Mas, para que isso aconteça, o Brasil também precisa jogar no contexto americano e, muito especialmente, no contexto sul-americano. É preciso que o Brasil seja capaz de realizar uma influência benfazeja na condução da forma como deva se processar nossa integração no mundo, a integração do nosso continente ibero-americano no mundo. O Brasil é a grande liderança ibero-americana no mundo.

Sim, mas essa liderança pode ser limitada ou confrontada pela condução atual da política norte-americana de segurança nacional.

Eu acredito que confrontar não é bem o caso. A política norte-americana atual tem condições de impor limites, é certo. Acho muito difícil que o Brasil não vá à Alca - acredito que o Brasil irá. Mas ele irá negociando, não só porque exerce liderança subcontinental importante, mas também porque é do interesse do sistema internacional, especialmente da União Européia, que o Brasil seja mais jogador. Evidentemente, tudo isso que estamos conversando vai depender da orientação diplomática que se inicia agora, com o governo Lula, e de sua capacidade de abrir e encontrar espaços.

Então qual o grande desafio do Brasil agora?

Eu diria que não é tanto, como insistem alguns, o tema da desigualdade, o desafio hoje está no tema da pobreza.

Eu só queria lembrar que a questão da fome e da pobreza é também uma questão mundial. Recentemente, um diretor do Banco Mundial afirmou que esse problema deixou de ser periférico, deixou de ser uma questão, digamos, local, brasileira, para ser uma questão continental e mundial.

Eu sei, mas desconfio das intenções dos que afirmam a prevalência do tema da desigualdade sobre o da pobreza. O tema da desigualdade importa uma leitura da nossa história em chave oposta a esta que formulei ao longo da nossa conversa. Abordá-lo como um desafio da hora presente importa, entre outras coisas negativas, atacar os interesses dos setores organizados, base de suporte da esquerda, que são acusados de privilegiados, e negligenciar a agenda da retomada do desenvolvimento econômico. É claro que o crescimento econômico, por si só, não erradica a desigualdade, mas atua logo de modo altamente positivo sobre a diminuição da pobreza, que é, para mim, o grande objetivo, nas condições dadas, de uma política social no país.

Você viu um filme, feito em São Paulo, Cronicamente Inviável, um filme produzido já no final governo Fernando Henrique Cardoso, com uma leitura sobre o Brasil na contramão do que nós estamos conversando? Muito resumidamente, o filme vai concluir que o Brasil é cronicamente um país inviável, uma sociedade onde o experimento político democrático encontra sérias dificuldades para se enraizar no cotidiano das pessoas. No filme, nosso herói, o homem comum, anônimo, não é capaz de levar à frente a absolvição da nossa história.

Não vi. Mas o que ganhou contra essa percepção do cronicamente inviável foi o cronicamente viável - ganhou o Sérgio Buarque de Raízes do Brasil, ganhou o tema da democracia racial em Gilberto Freyre. Esses são os temas que estão saindo vencedores dessa agenda, quer dizer, somos, enfim, cronicamente viáveis. Agora, nosso problema é pensar como o Brasil avança. Como é que o Brasil avança? Avança por movimentos que apertam, em mais uma ranhura, a porca do parafuso. Cada movimento nesse apertar da porca do parafuso tem-se feito acompanhar por grandes manifestações massivas, como nas greves sindicais de fins dos anos 1970, na luta pelas diretas já, no enterro cívico de Tancredo Neves, no impeachment de Collor e, agora, nesse dia da comemoração da vitória da esquerda brasileira.

A nossa Bastilha?

Qual Bastilha? A de 1789? A fabulação dos nossos utopistas não ousa tanto. Chegamos à Bastilha de 1981, de Mitterand. Fizemos rodar a porca mais uma vez na ranhura do parafuso, um movimento progressivo e em espiral. Se sobre 1937 podemos falar de ampliação autoritária da República, agora estamos assistindo uma ampliação democrática da República. Hoje, a questão social se impõe a todos os personagens da vida brasileira e o desafio está em saber encaminhá-la no contexto de uma república democrática, o que significa fazê-la passar pelo sistema da representação, a política e a funcional, como é o caso dessas instituições novas presentes na nossa institucionalidade, como a ação civil pública...

O que você entende por representação funcional e como ela pode dar passagem à questão social?

A representação funcional é aquela que se exerce no cenário do Poder Judiciário, especialmente por meio dos novos institutos que permitem a cidadania adquirir e defender direitos contra o Estado e as empresas, como nos casos da ação civil pública e da ação popular. Em princípio, essa forma de representação não colide com a da representação política, e, tal como já se comprova na experiência brasileira, podem ser complementares em um processo de mútuo reforço, na tentativa de realizar o que a literatura chama de representação generalizada. A ação combinada delas pode aumentar a pressão da sociedade sobre o mundo sistêmico, que é o tema da economia mesmo, impondo a procura de soluções mais generosas, mais inclusivas, capazes de levar em conta a pluralidade dos interesses existentes, em particular os dos setores subalternos. Enfim, uma articulação entre o social, o político, o econômico, que encontre o seu vetor naquele primeiro termo. Penso que nessa equação está a possibilidade de nós conseguirmos desbravar um caminho novo. Entretanto, tudo isso resulta em muita inovação, os arquitetos dessa saída ainda não são conhecidos e não necessariamente são os homens que estão aí.

Esse é o começo de que você falava?

Claro. Esse vai ser um processo de seleção natural, muitos aparecerão, não se demonstrarão à altura das circunstâncias e vão ser afastados. Para tornar essa discussão mais empiricamente referida, eu quero dizer que nós estamos no limiar de construirmos uma socialdemocracia, de fato, no Brasil. O encontro na cidade mineira de Araxá entre Lula e os governadores eleitos pelo Partido da Socialdemocracia Brasileira (PSDB), o partido derrotado nas eleições presidenciais, foi uma demonstração clara do potencial contido nesse caminho. A reunião do Lula com os dirigentes sindicais também foi muito interessante: uma reunião em que Lula diz para as diferentes centrais sindicais do país e de São Paulo, em particular, que eles são parte do governo, isto é, que eles têm de trazer para a sua lógica sindical a lógica da ação republicana. Nessa reunião, Lula trouxe o sindicalismo para o contexto republicano, embora seu partido tenha nascido fora desse contexto, e, em certo sentido, contrário a ele. Aí está o sindicalismo como personagem da vida republicana, e não como simples força social do mercado.

Gostaríamos que você esclarecesse mais a questão do encontro de Lula com os governadores. Por que o encontro tem essa importância?

O que eles trataram ali foi do tema da governabilidade e também da convergência de interesses, pois há evidentes vizinhanças entre a socialdemocracia do PSDB e a do PT. Essa possibilidade de encontro é bem-vinda, e creio, não apenas pela ótica da governabilidade.

Qual a lógica desse processo?

O quadro que eu venho tentando expor aqui pode ser exposto a uma demonstração pela lógica do absurdo. Digamos que essa vitória popular não tivesse as características de "absolvição" da história do país que procurei narrar aqui. Se o presidente chegasse com uma visão negadora e negativa da tradição do passado, e, mais que isso, comprometido com a idéia de refundação, onde estaríamos? Numa impossibilidade absoluta. Para que essa porca pudesse girar, houve a necessidade da conversão a que aludi. Isso leva a um movimento muito interessante: a natureza cognitiva básica, fundamental, da sociedade brasileira se expressa através da dialética. O brasileiro não pode viver sem a dialética, porque ele não pode realizar nenhum movimento que obedeça à mesma lógica da inspiração originária. Porque ele tem sempre que negociar, ele tem sempre que resolver antinomias, contradições que vão fazendo com que ele seja um outro e vá mudando no curso da negociação. Nós não tivemos um movimento fundacional, a erupção agressiva de uma nova identidade no mundo. O que se impôs aqui foi a dialética como a categoria básica do brasileiro, que vem construindo sua identidade por meio desse recurso metafísico, como aparece tão claramente na questão racial - o grande laboratório pelo qual passamos para instalar a dialética no centro da nossa vida. É uma dialética que sabemos que não conhece a síntese, que não pode conhecer a síntese, porque os seus termos sempre se repõem, embora sempre de forma cada vez mais rica, como está acontecendo agora com a reanimação da nossa história por forças políticas que antes descriam dela.

É uma dialética travada.

Não, não é travada. É aberta, porque sempre se recompõe, numa espiral. É esse o movimento por que estamos passando. É um momento pedagógico, extraordinário não apenas para a jovem geração da intelligentsia. Muito importante para ela, mas não só para ela. É importante para o homem comum, que votou no Lula e quis o Lula, que sabe a que constrangimentos ele se encontra subordinado, que entende esses constrangimentos e espera que sejam superados porque já começa a acreditar nas instituições da democracia brasileira e a reconhecer que elas admitem a sua influência.

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Fonte: Margens, n. 2, dez. 2002.

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