A vida na democracia é um exercÃcio pedagógico permanente. Embora não haja ninguém investido do papel só de professor ou só de aluno - ao contrário, como na lição rosiana, professor é quem, de repente, aprende! -, em princÃpio cabe à s velhas gerações socializar politicamente as mais novas, transmitindo-lhes um legado de idéias e lutas, enquanto tentam recolher, do contato com os jovens, novas inquietações e atitudes.
Deste ponto de vista, o mais grave numa ditadura é a ruptura desta relação pedagógica. Os mais experientes, punidos pela derrota, perdem o contato direto com quem chega à vida adulta. E quem começa a vida em tempos de autoritarismo vê-se diante de um terreno minado: ou adere à situação estabelecida mais ou menos oportunisticamente, ou se rebela com maior ou menor grau de consciência. E os danos são quase tão graves num caso e no outro. Os oportunistas correm um risco humano altÃssimo, que nem é preciso descrever. E os rebeldes, só pelo fato de serem rebeldes e de lutarem contra uma ditadura, não garantem para si, automaticamente, personalidades democráticas nem fazem necessariamente a polÃtica mais razoável.
Este é um drama tÃpico dos tempos de chumbo: como no poema de Brecht, quem luta pela amizade entre os homens nem sempre tem tempo, ou condições, de ser amável. Uma ditadura deforma a todos, até aqueles que, em princÃpio acertadamente, a combatem.
O Brasil de 1964 (mas, especialmente, depois de 1968) é pródigo em exemplos desse tipo. Uma parte da juventude - generosa, sem dúvida - escolheu enfrentar o regime nos próprios termos deste, despedaçando-se na tortura, na morte e, nos casos mais favoráveis, no exÃlio. Era tal a desproporção de forças que a derrota estava dada desde o inÃcio. Não havia saÃda para a luta armada, quer se apresentasse como mera resistência, quer pretendesse indicar uma via qualquer para o socialismo, sob a influência da então recente revolução cubana ou da chinesa, na sua fase extremista da revolução cultural e do impagável "livrinho vermelho". E mesmo que, raciocinando por absurdo, a vitória pelas armas fosse possÃvel, podemos nos perguntar legitimamente que tipo de socialismo teria advindo desta forma militarizada de entender a luta polÃtica.
Na verdade, sob qualquer aspecto, a luta armada dos anos 60 e 70 era absolutamente inviável e, com todo o respeito pelo sacrifÃcio imposto a muitos, talvez seja adequado vê-la, desencantadamente, como um dos efeitos da pedagogia interrompida em 1964. O saldo foi trágico: perdemos gente capaz de trabalhar muito, e de modo muito produtivo, pelas melhores causas do nosso paÃs e do nosso povo.
Nos anos de ferro e fogo, foi custoso retomar o curso da polÃtica, da participação no partido "consentido" e nos sindicatos. Atuar no então partido de frente - dizia-se equivocadamente - era "legitimar" os militares no poder. Não raro, vÃamos esta atividade reduzida aos nossos "grandes velhos" - personalidades de trajetória densa, de diferentes orientações e escolhas de vida, mas de firmÃssima implantação na história da República: gente do calibre de Ulysses Guimarães, Tancredo Neves, Alceu de Amoroso Lima ou Barbosa Lima Sobrinho.
Na esquerda, desde os tempos da Frente Ampla e até meados dos anos 70, só os comunistas do PCB trilhavam invariavelmente este curso, pagando, aliás, o preço da acusação renitente de "reformismo" ou "capitulação", dirigida pelos grupos da extrema-esquerda adeptos da ilusão armada. Assim como pagariam, posteriormente, o durÃssimo tributo cobrado pela repressão, na forma do assassinato deliberado de dirigentes como Luiz Inácio Maranhão, Orlando Bonfim, Davi Capistrano, entre vários outros. Ao que se sabe, a liquidação fÃsica dos comunistas passou a ser, inclusive, um dos requisitos da distensão lenta, segura e gradual, como forma de prevenir uma possÃvel recuperação vigorosa da velha legenda após o regime militar, como tinha acontecido pouco antes com o colapso do salazarismo em Portugal.
De todo modo, os "velhos" do partidão traziam em si a marca de uma deficiência tremenda, que poucos analistas souberam avaliar corretamente em toda a sua dramática extensão. Mesmo no perÃodo constitucional, entre 1947 e 1964, o PCB tinha sido um partido ilegal, à s vezes alvo direto da repressão, à s vezes meramente tolerado, com seus candidatos avulsos apresentados sob a cobertura de variados outros partidos. Pensando bem, aquela não era propriamente apenas uma marca negativa do velho partidão, mas um estigma da democracia brasileira e do seu sistema de partidos: hoje, quando gozamos de um regime inédito de liberdades, podemos imaginar, com espanto, o que terá significado esta amputação de direitos polÃticos, que atingia em cheio o mais importante partido de esquerda e, conseqüentemente, as possibilidades de representação dos subalternos, dos de baixo.
Era natural que, nas novas condições da clandestinidade do pós-64, estes velhos comunistas parecessem, cada vez mais, não falar a linguagem dos jovens ou, pelo menos, da maioria dos que se interessavam pela vida pública e de algum modo agiam politicamente. No entanto, faziam um movimento correto sob todos os pontos de vista e até bastante rico de possibilidades teóricas: em termos simples, aliavam-se aos democratas e aos liberais para combaterem a ditadura. À sua maneira, com a linguagem de comunistas da III Internacional, com as dúvidas e preocupações herdadas do colapso do stalinismo em 1956, faziam polÃtica de verdade, dura, cotidiana, clandestina, mas com dimensão histórica e vocação hegemônica. A prosa das suas vidas e do seu tipo de polÃtica - na aparência nada heróica - podia eventualmente brilhar como poesia, como no Rasga Coração, do Vianinha, ou no Eles não usam blacktie, de Guarnieri e Hirszman. Mas o importante é que, sem pegar em armas, era grande polÃtica, capaz de prever nos traços essenciais o que viria a seguir: a luta pela Constituinte e o estabelecimento, entre nós, de um regime republicano com amplas liberdades.
Estas linhas não querem ser de modo algum nostálgicas. O partidão acabou inapelavelmente junto com a experiência soviética, à qual, apesar da sua óbvia inserção nacional, estava umbilicalmente ligado e da qual decorriam limites insuperáveis. Mas não só: na sua estrutura interna e, especialmente, na forma mentis de muitos dos seus dirigentes e militantes havia a marca implacável da bolchevização dos partidos comunistas - infelizmente, um dos mais "exitosos" programas de Stalin a partir de meados dos anos 1920, ainda antes da consolidação definitiva do stalinismo, e que, diga-se de passagem, tem se revelado desde então um dado mais ou menos permanente do modo de ser da esquerda, a velha e a nova. De fato, um "jacobinismo" anti-sistêmico inteiramente inadequado à s sociedades de tipo ocidental parece fazer parte de um código genético duro de modificar, apesar da lição gramsciana, já velha de muitas décadas, que aponta a incompatibilidade radical entre bolchevismo (com alma ou sem ela, como é mais comum nos nossos dias) e Ocidente polÃtico.
De todo modo, e já voltando ao PCB, se tudo o que existe merece morrer, pode-se envelhecer e morrer bem, deixando inclusive um legado proveitoso ou potencialmente proveitoso. E a história da oposição ao regime militar segundo a polÃtica pecebista de ampla coalizão, em defesa da democracia dita burguesa (no léxico da esquerda autoritária), é um desses legados que, incompreensivelmente, ainda se insiste em ignorar ou passar por alto, como nota de pé de página sem maiores conseqüências. No entanto, as implicações são muito amplas, pois o exemplo brasileiro confirma uma tendência mais geral: todas as vezes que, na teoria ou na polÃtica, a idéia comunista se aproximou da idéia democrática, o resultado foi perturbadoramente produtivo, como que a comprovar, reiteradamente, que o comunismo é mesmo uma "heresia do liberalismo". A perda de conexão entre um e outro costuma ser catastrófica para ambos. No nosso caso, esta perda esvazia - mais cedo ou mais tarde - a dimensão de liberdade que devia ser intrÃnseca, mas de fato nem sempre é, ao projeto de qualquer esquerda.
A nova esquerda que sucedeu ao PCB nasceu em polêmica com a idéia de frente, aferrada, muitas vezes rigidamente, à idéia de cisão, de autonomia dos "trabalhadores", entendidos como um bloco social que, em estado de natureza, chicoteava e expulsava do Templo os trezentos picaretas. Entre Tancredo e Maluf, não viu motivos para escolher, preferindo preservar a própria identidade e omitir-se, "revolucionariamente", num contexto que decidia entre a redemocratização ou a reprodução do regime autoritário em trajes civis (e esfarrapados de corrupção caricata). Alguns anos depois, a extraordinária dificuldade para assinar e homologar a Carta de 1988 iria sugerir uma espécie de mal-estar subjetivo diante da estrutura institucional de uma república democrática, ainda que, objetivamente, aquela esquerda fosse um dos pilares do novo paÃs que surgia: era como se fosse melhor um capitalismo politicamente tosco, não democrático, e por isso mesmo alvo ideal de uma estratégia à moda bolchevique. E talvez não casualmente, uma vez no poder, esta esquerda "social", avessa ao mundo maquiavélico da polÃtica, teve de abandonar apressadamente suas veleidades rupturistas, enquanto caminhava atrapalhadamente no sentido oposto, o da adoção subalterna do programa adversário.
Um dos diagnósticos dessa trajetória em ziguezague aponta uma carência de reflexão madura sobre as formas da polÃtica moderna. Havia muito de voluntarismo, e de recusa da mediação polÃtica, nos componentes básicos da nova esquerda hegemônica, no seu sindicalismo de orientação pré-polÃtica ou antipolÃtica, nas correntes de extrema-esquerda egressas da luta armada e no catolicismo social radicalizado. Como resultado, uma autopercepção messiânica, salvacionista, refundadora de tudo, vingadora intransigente de quinhentos anos de desmandos dos poderosos e misérias dos dominados. Preto no branco, o bem contra o mal, a salvação contra o pecado. Nos áureos tempos, uma UDN de macacão ou de sociólogos, para usar outra metáfora neste nosso tempo de metáforas. Ora, nada mais avesso ao tempo longo da democracia, à s suas mediações complexas, à progressiva socialização da polÃtica, à mobilização de competências e de um "progresso intelectual de massas" - todos estes, elementos para governar bem e para estar presente na sociedade de modo lúcido, requisitos indispensáveis para uma estratégia reformista, gradual e, se quiserem, para um reformismo forte, como deve ser e como precisamos.
De resto, não seria a primeira vez que a ortodoxia doutrinária e a volúpia desorientada de ruptura se mostrariam não como atitudes contrárias à subalternidade, mas como sua véspera, seu pressuposto indispensável. E condenadas - a ortodoxia e a subalternidade - a se reproduzirem indefinidamente, condicionando-se uma à outra num rosário de acusações violentas, de pesadas recriminações de "traição", tais como aquelas que povoaram a história da esquerda no século XX e, agora, assolam o campo da intelligentsia petista e ex-petista. Pelo menos, e se servir de consolo, já sabemos que este cÃrculo vicioso só pode ser rompido restaurando-se a relação pedagógica própria da vida democrática, inclusive entre esta nova esquerda e o velho comunismo, entre presente e passado, no que este tem de mais digno de preservação. E, entre o que deve ser preservado (evidentemente, no seu espÃrito e na sua inspiração última), está a polÃtica comunista de frente democrática, amplamente exitosa no pós-64. Objetivamente, as condições para o restabelecimento desta relação pedagógica estão mais claras do que nunca. Resta saber se haverá atores e sujeitos coletivos capazes de protagonizá-la com consciência e obstinação. Podemos esperar algum tempo por isto, mas não indefinidamente.
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Luiz Sérgio Henriques é editor de Gramsci e o Brasil.