Busca:     


Imprensa e agenda ultraliberal no Brasil

Francisco Fonseca - Janeiro 2007
 

Introdução

Objetiva-se, neste artigo [1], desvendar certas concepções perenes por parte da grande imprensa [2], imunes portanto às vicissitudes da conjuntura, e fundamentais para a democracia: a visão sobre os direitos sociais e sobre o conflito, sobretudo o conflito de classes, o que implica o posicionamento perante os direitos políticos.

Observaremos especificamente temas atinentes aos direitos sociais elaborados durante o Congresso Constituinte entre 1987 e 1988, sobretudo a ampliação dos mesmos, assim como o direito à greve. A ordem social implicou enorme controvérsia, e a grande imprensa adotou posições vigorosas e militantes em relação à mesma. A importância deste período histórico refere-se ao fato de o projeto constitucional explicitar uma dada visão de mundo e certos interesses num contexto em que o embate ideológico se tornou ainda mais ostensivo.

Do ponto de vista teórico consideramos ser a imprensa uma das instituições mais eficazes na inculcação de idéias no que tange a grupos estrategicamente reprodutores de opinião - constituídos pelos estratos médios e superiores da hierarquia social brasileira -, caracterizando‑se (seus órgãos) como fundamentais aparelhos privados de hegemonia - isto é, entidades voltadas à propagação de idéias com vistas à obtenção da hegemonia. Em Gramsci, os aparelhos privados de hegemonia podem ser assim sintetizados:

[...] são organismos sociais ‘privadosÂ’, o que significa que a adesão aos mesmos é voluntária e não coercitiva, tornando‑os assim relativamente autônomos em face do Estado em sentido estrito [no contexto, portanto, de sua configuração ampliada, isto é, sociedade política + sociedade civil, possível nas conformações sociais do tipo "ocidental" - FF]; mas deve‑se observar que Gramsci põe o adjetivo ‘privadoÂ’ entre aspas, querendo com isso significar que - apesar desse seu caráter voluntário ou ‘contratualÂ’ - eles têm uma indiscutível dimensão pública, na medida em que são parte integrante das relações de poder em dada sociedade [3].

Ao lado deste importante conceito, deve-se também compreender a grande imprensa como "empresa capitalista", que, como tal, objetiva o lucro, mas que procura universalizar interesses particularistas, em nome de conceitos supostamente universais, tais como a "nação", o "povo", a "opinião pública", entre tantos outros. Por último, completando a tríade, em certos momentos a grande imprensa atua como "partido político" ou "intelectual coletivo", objetivando orientar e guiar as ações de atores concretos, sobretudo em momentos de embates político-ideológicos cruciais, como foi o caso da Constituinte.

É importante ressaltar, por fim, que a formação de uma agenda na Constituinte teve impacto sobre as instituições políticas, tendo em vista seu papel de sustentáculo jurídico/político/ideológico da democracia.

O projeto dos periódicos e sua forma de operar

A primeira questão importante a ser ressaltada, quanto à introdução de novos direitos sociais, diz respeito ao impacto destes sobre os próprios órgãos de comunicação como empresas capitalistas (em razão do aumento do custo da mão-de-obra). Mas, para além deste argumento "particular", os interesses representados pelos jornais os opõem a esses novos direitos. As teses da futilidade e, sobretudo, da ameaça e da perversidade foram exaustivamente utilizadas (como veremos), demonstrando todo o conservadorismo - baixa propensão ou mesmo reação à introdução de novos direitos - da grande imprensa [4].

Afinal, alguns dos direitos sociais propostos - tais como, entre outros, a diminuição da jornada de trabalho, a ampliação da licença maternidade, a licença paternidade, o aumento da valor da hora-extra - foram vistos como: a) "catastróficos à produção", por desestimularem o capital a investir, fazendo crescer conseqüentemente o desemprego, o oposto portanto do que se desejava; b) "inócuos", por não serem respeitados pelo "mundo real" da economia; e c) ameaçadores dos direitos anteriormente conquistados, no caso do mercado formal de trabalho. Esses argumentos/imagens foram utilizados à exaustão.

Para o JB, haveria uma "obsessão social" por parte dos constituintes: "A proposta de 40 horas é uma daquelas que criam uma espécie de garantia artificial que, na prática, quase ninguém vai respeitar [...]" (JB, 13/07/1987) - trata-se aqui da tese da futilidade, dada a suposta ineficácia da medida. Mas será a tese da perversidade a mais utilizada pela grande imprensa: "A Constituinte embarcou em um caminho de distribuição de benefícios sociais cujo produto só pode ser um e único: redução da taxa de investimentos, com o conseqüente atraso econômico. [...] (JB, 28/02/1988, ênfases nossas).

A negação dos novos direitos sociais será total, com argumentos que se iniciam pela inadequação de sua inserção numa Constituição até seus efeitos deletérios, numa posição frontalmente contrastante com o intuito da maioria dos constituintes. Afinal, estes não se preocupariam com o principal, a produção: "Por esse rumo, nunca se sai do paternalismo; e o povo continua eternamente dependente. É mais do que tempo de mudar essa mentalidade, que é a própria definição do atraso. [...] O ‘social’ também está ligado ao desenvolvimento [...]. Mas a visão primária do ‘social’ não pensa no desenvolvimento, intimamente ligado à livre iniciativa: pensa em criar restrições e ônus para a empresa privada" (JB, 29/02/1988).

Portanto, a distribuição da renda far-se-ia exclusivamente por meio do desenvolvimento capitalista, sendo tributária deste, por ser, infere-se, dependente dos lucros auferidos pelo capital. Em termos silogísticos, seria correto inferir o contrário, caso a produção decrescesse.  A visão de mundo patronal se expressa claramente neste tema. Mais ainda, demonstra uma vez mais como a grande imprensa se opõe a tais direitos com vistas à obtenção da hegemonia, uma vez que a "mentalidade atrasada" precisaria ser substituída pela visão "moderna" do mundo, que valorizaria a "iniciativa privada" pela via do "mercado livre".

Já para OG, que se mostra um vigoroso adepto da "ética do trabalho" - de forma semelhante a OESP -, os direitos sociais estariam "[...] na contramão da motivação fundamental e dos interesses do trabalhador; ou a Constituição ideal, na contramão do Brasil real. [...] Sorte pior [dados os efeitos negativos previstos – FF] a experiência faz prever para o aumento [...] da licença remunerada à gestante: a esse aumento corresponderá uma restrição, a restrição do mercado feminino de trabalho. [...] Concessões feitas em total descompasso com os efeitos não prejudicarão apenas os trabalhadores, [...] [mas também a] estabilidade institucional" (OG, 15/10/1987, ênfases nossas). A tese da perversidade é, portanto, igualmente defendida pelo jornal O Globo, que se arroga, além do mais, a conhecer os interesses dos trabalhadores - trata-se da antiga estratégia da grande imprensa de se autonomear intérprete da sociedade, inclusive, neste caso, dos "dominados".

A imagem catastrófica é reiterada, constituindo-se num verdadeiro bombardeio retórico, utilizando-se para tanto de expedientes ao estilo cassandra. Para OG: "[...] A produtividade cairá, inevitavelmente. [...] Será lamentável que, por falta de informação e análise aprofundada das questões, venhamos a ter uma Constituição que, na ilusão do avanço, produza o retrocesso no campo das relações de trabalho" (OG, 07/1988, ênfases nossas).

Para além da perversidade ocasionada pelos direitos sociais, o jornal opera uma inversão de sentido, ao considerá-los "retrocesso". Em outras palavras, nem os adeptos da criação de direitos seriam "progressistas" nem os direitos em si seriam um avanço. Trata-se de uma sofisticada estratégia de reformular o próprio vocabulário presente na Constituinte e na sociedade, de tal forma que ideológicas fossem apenas e tão-somente as propostas da "esquerda" e dos "populistas", que, por motivos diversos, agiriam em razão das "aparências" e não da "essência" do capitalismo "moderno".

Tal como o similar doutrinário JB, mas também como o pragmático OG, o liberal-conservador OESP - uma vez mais as diferenças de perfil não impedem a similitude de posicionamentos e projetos - usa dos mesmos expedientes. Afinal, para OESP "Retrocesso não é avanço", título de um editorial que sintetiza sua histórica visão de mundo, pois, para este jornal, dever-se-ia indagar a utilização do termo "avanço":

Porque, se se cuida de reduzir aquela jornada [de trabalho] e premiar indistintamente todos os assalariados com uma estabilidade capaz de atingi-los como autêntico bumerangue, vitimando-os, ocorrerá, sim, autêntico retrocesso; [...] esta [...] palavra [...] [implica] conferir aos que qualifica o demérito de se oporem a tudo o que signifique progresso natural da sociedade. Todos sabem que distribuir a estabilidade com tamanha generosidade nivelaria por baixo bons e maus funcionários [...]. Está claro que nisso existe condenável contra-senso. Quando se pensa em abrir a sociedade para facilitar a ascensão dos melhores e mais capazes, sejam quais forem, venham de onde vierem, procede-se em sentido inverso àquele trilhado [...] A justiça consiste em dar desigualmente aos desiguais - e não, evidentemente, em comprimi-los sob uma forma constrangedora a fim de igualá-los artificial e imerecidamente. [...] [Tal conjunto de direitos] acarretaria pernicioso desestímulo aos melhores" (OESP, 18/06/1987, ênfases nossas).

Ora, a introdução de direitos não apenas equivaleria ao retrocesso como conspurcaria valores essenciais da sociedade capitalista vinculados ao mérito. O mote "os melhores e mais capazes" sintetiza esta visão tradicional e hierárquica, mais próxima de um "darwinismo social", por pretender essencialmente estimular a competição na força de trabalho. O caráter conservador desta proposição - defendida há muito por OESP e compartilhada pelos outros jornais, com a relativa exceção da FSP - reforça a dominação sobre o trabalho, ao incutir-lhe valores vinculados à ascensão social. O privilegiamento ao capital é notório, pois, além de implicar adestramento, objetiva principalmente impingir a imagem de que basta ao trabalhador se esforçar para melhorar de vida, versão nacional do self made man norte-americano.

Embora o conservadorismo de OESP esteja - como visão de mundo - de certa forma na "vanguarda" de seus pares, as diferenças entre os jornais, quaisquer que sejam, tornam-se indistintas quando as questões em jogo referem-se seja aos seus interesses particularistas, seja à representação do capital global, seja, ainda, à reprodução do sistema capitalista. Afinal, OESP também se utiliza da tese da perversidade, ao afirmar que "[...] as novas disposições constitucionais irão chocar-se com seus interesses [dos operários - FF]. [...] as medidas ‘sociais’ aprovadas [...] surtirão efeito bastante maléfico, pernicioso, antes de tudo, para a classe operária. [...] as medidas adotadas não concorrerão para aumentar a produtividade [...] mas para incrementar a automação. [...] o populismo é enganador..." (OESP, 01/03/1988, ênfases nossas). Portanto, o "argumento" oscila entre a tese da perversidade e a "falsa" consciência da esquerda e dos populistas. Tais justificações do jornal representam variantes de uma mesma raiz: a manutenção do status quo.

Entre todos os jornais, a FSP manteve uma alegada preocupação com os trabalhadores. Mas seu mote "Menos governo, menos miséria" - reportagens especiais, com editoriais de capa, publicadas um mês antes do segundo turno das eleições de 1989, que objetivaram apoiar subliminarmente Collor - enfatiza a necessidade de o Estado priorizar as áreas sociais e retirar-se das atividades produtivas. De todo modo, a FSP também aderiu à cantilena, embora com menos vigor. Segundo o jornal:

Propostas como a remuneração adicional [...] para o trabalhador em férias, o aviso prévio proporcional ao tempo de serviço e o limite de seis horas para a jornada em turnos ininterruptos, que as lideranças empresariais condenam, inscrevem-se no vasto conjunto de direitos sociais aprovados [...] sem nenhuma consideração mais séria sobre os custos que acarretam. [...] [Representam:] novos custos para o conjunto da população [...] [que] nada mais serão do que o preço que a sociedade terá de pagar pela demagogia de seus representantes (FSP, 08/07/1988, ênfases nossas).

Como se vê, mesmo tendo mantido um discurso em prol dos direitos sociais, paralelamente à agenda liberal pró-mercado, a FSP também segue a estratégia de seus pares tanto ao utilizar a tese da perversidade quanto ao considerar como "demagogia" e "populismo" a adoção de novos direitos sociais. Mas, mais relevante ainda é o fato de a grande imprensa como um todo - que criticara o capital nacional por causa de sua baixa responsabilidade e ausência de visão a longo prazo quando da aplicação dos planos de estabilização - adotar novamente posições convergentes com as dos empresários, como o demonstra a passagem acima.

Em outras palavras, além de atuar em uníssono, os periódicos, como "partido do capital" e aparelho privado de hegemonia, se "reconciliam" - dependendo das circunstâncias - com o empresariado. Trata-se de um interessante jogo de acomodações e reposicionamentos da grande imprensa em relação aos pólos de poder, sobretudo o capital, o qual ela representa, embora de forma complexa e por vezes tensa.

No que tange à definição constitucional do direito de greve, uma vez mais observamos uma incrível similaridade entre os periódicos, correspondente às características acima apontadas em relação ao patronato e à representação do capital. O direito de greve é um tema crucial para a democracia numa sociedade capitalista que se quer democrática, tal como afirmam os jornais em foco. Mas, segundo o JB, a "[...] liberdade de greve é um abuso conceitual [...]" (JB, 07/07/1988, ênfases do jornal). Logo, dever-se-ia refreá-la, infere-se. O fato de os constituintes terem permitido a paralisação das atividades nos serviços públicos, mesmo resguardadas certas condições, é considerado um absurdo, inclusive conceitual, uma vez que denotaria perda de autoridade e mesmo fragilidade do Estado.

Ora, a FSP falará o mesmo, considerando que os constituintes estariam permitindo o "direito irrestrito de greve" - o que é um evidente exagero -, inclusive nos serviços essenciais. "Um instrumento legítimo de luta se transforma em chantagem contra toda a população, concentra numa categoria específica de trabalhadores [os funcionários públicos - FF] um poder absoluto sobre o conjunto das atividades produtivas do país, com a chancela [...] [da] constituinte [...] [são] artigos condenáveis [...] (FSP, 15/07/1988, ênfases nossas).

Como veremos, o que a FSP diz ser um direito legítimo o será apenas em tese, pois, enfatize-se, o veto contumaz à mesma será uma marca da grande imprensa com um todo. A associação das greves à imagem de chantagem expressa claramente a crítica da FSP às leis que supostamente a facilitariam.

Mas serão O Estado de S. Paulo e O Globo os mais pronunciados e radicais opositores das greves, e da organização do trabalho de modo geral, na Constituição. Seu posicionamento patronal se evidencia totalmente. OESP parece demonstrar uma ojeriza particular às greves no setor público, dada a ameaça à autoridade, que, tal como para OG, deve ser "sagrada":

As greves que irromperam em empresas estatais [...] mostram com clareza o quanto a sociedade é impotente diante dos resultados da intervenção do Estado na economia. [...] São exércitos de empregados que agem com todas as regalias, direitos e mordomias de funcionários públicos, promovendo greves que se iniciaram com reivindicações salariais e ganham, hoje, aspectos nitidamente políticos e ideológicos, que levam à violência. Tudo isso mostra a incompetência do Estado empresário que, ao centralizar tudo em suas mãos, mostra fragilidade ao negociar com os trabalhadores que sabem ter um opositor incompetente, politicamente minado e, acima de tudo, contaminado pela praga do empreguismo (OESP, 19/11/1988, ênfases nossas).

A percepção acerca do mundo do trabalho estrutura-se na suspeição intrínseca de que os trabalhadores são revolucionários, tendo por trás de si "grupos radicais" [5]. Trata-se também de uma construção imagética, entre tantas outras produzidas estrategicamente pelo jornal, que, dessa forma, quer impedir que qualquer greve ocorresse, a começar do Estado.

Já OG expressa assim sua radicalidade no que tange à aprovação do direito de greve: seria "A porta da anarquia" (título de um importante editorial), uma vez que, "irrestrito", "[...] para todas as categorias de trabalhadores, em todas as circunstâncias, sob quaisquer pretextos [...], significa a porta aberta à desordem e ao caos. [...] É uma abdicação em favor da anarquia (OG, 17/08/1988, ênfases nossas). A estratégia de superestimar o poder conferido aos sindicatos é clara, forjando-se a imagem de que estes são dominados por "grupos radicais" desestabilizadores; além do mais, omitem-se quaisquer constrangimentos à decisão dos trabalhadores ao declararem uma greve, tais como o poder dos patrões, o medo do desemprego e a própria legislação, entre outros. Com isso, quis-se criar a imagem de que ao poder sem limites dos sindicatos corresponderia a pusilanimidade da lei... e a fragilidade da sociedade. A fronteira entre estratégia retórica e visão de mundo (conservadora, patronal e autoritária) é indecifrável.

Por fim, o mesmo OG revela e sintetiza cabalmente o conservadorismo autoritário de toda a grande imprensa com a seguinte afirmação:

No Capítulo ‘Dos Direitos Sociais’ existe duplicidade de tendências, ambas suficientemente perigosas e capazes de produzir efeitos desastrosos [...]. A pretexto de garantir emprego, retroagimos ao paternalismo intervencionista [...] [no caso da] estabilidade no emprego [...] no Art. 6 [...], bem como o regime de 44 horas, [que] são a negação da liberdade de trabalho e a consagração do intervencionismo no mercado de mão-de-obra. Já no Art. 10 [...] dispõe-se o contrário, isto é, a não intervenção do Estado, quando se trata de liberdade de greve. [...] Tudo é disposto de forma a permitir greves sem restrições [...] Os dirigentes da greve decidem e fixam a seu livre-arbítrio os limites da ação de greve. Temos consagrada a contradição do excesso de intervenção do Estado no Art. 6 e da ausência do poder dos governos, no caso de greve. Vedada pelo projeto só a greve de iniciativa empresarial. Dois pesos e duas medidas" (OG, 11/10/1987, ênfases nossas).

Sem meias palavras, o jornal propugna o "livre mercado", para a força de trabalho, e o Estado repressor em relação às greves. Em nome do "bem comum", a defesa dos interesses patronais se evidencia, seja pela forma como os direitos dos trabalhadores (em sentido amplo) são concebidos, seja pela demanda de que, no limite, também o empresariado pudesse parar a produção (locaute) - demanda esta meramente retórica e fictícia, pelo fato de que os interesses capitalistas se opõem à paralisação das atividades produtivas.

Portanto, não apenas OG mas toda a grande imprensa, embora com ênfases distintas, querem antepor limites à organização do trabalho - sendo a greve o alvo mais importante -, em contraposição a uma espécie de laissez-faire no mercado de trabalho, o que explica cabalmente a oposição radical a toda e qualquer greve concreta.

Vejamos, agora, como a grande imprensa atuou na Constituinte, em razão de seu papel político-ideológico, isto é, de seu papel de orientar, dirigir os constituintes com vistas a vetar as teses de seus adversários no tocante aos direitos sociais, de tal maneira que os interesses de um capitalismo liberal e conservador fossem assegurados. Essa posição implicou a utilização de estratégias diversas, entre as quais opor uma suposta maioria liberal - tida como silenciosa e pouco organizada, mas ainda assim maioria seja na sociedade, seja na Constituinte, via "Centrão" - a uma minoria de esquerda, considerada radical e extremamente organizada. Esta, contudo, teria hegemonia na Constituinte, sobretudo na Comissão de Sistematização.

Embora jamais tivesse mostrado qualquer dado que mensurasse esta relação entre maioria e minoria, a grande imprensa como um todo - com menor incidência na FSP - formulou esta imagem com vistas tanto a concitar os parlamentares liberais e conservadores como a formar a opinião de seus leitores. Assim podemos sintetizar esta dicotomia. Para OG: "[...] A maioria quer uma sociedade aberta, com liberdade de criar e produzir, com menor regulamentação estatal. A maioria não tem medo de manter e cultivar o relacionamento internacional [...], a maioria quer um sindicalismo livre, sem paternalismo restritivo do mercado de trabalho e sem a anarquia do grevismo" (OG, 14/08/1987, ênfases nossas).

Como se vê, o jornal sabe tanto o que a "maioria" deseja como o que ela rejeita; a alegada confluência, em ambos os momentos, por parte da grande imprensa com a suposta "maioria" é nada mais do que um recurso retórico-ideológico. Patenteia-se a arrogância, em razão da autoproclamada onisciência e do descompromisso quanto a qualquer demonstração de dados que comprovasse tal confluência. A contenda político-ideológica supera qualquer "método científico", e o que importa é a obtenção da hegemonia liberal-capitalista, que estava fortemente ameaçada, segundo a percepção dos jornais, pelas cláusulas sociais aprovadas, assim como pela proteção ao capital nacional (num momento marcado pelo distanciamento do país do sistema financeiro internacional, em razão da decretação da moratória da dívida externa em fevereiro de 1987).

Afinal, o Brasil seria: "Uma nação de pensamento centrista e conservador [...]" (JB, 03/04/1987). Este viés teria sido, porém, desrespeitado pela esquerda, sobretudo o PMDB, que nomeara "esquerdistas" para as principais comissões temáticas encarregadas de comandar o processo constituinte. Mais ainda: "Entre as duas formas em que se explicita a representação do PMDB (esquerda e moderada), disfarça-se a grande maioria que [...] é também a expressão da grande maioria dos brasileiros. É aí que se encontra o centro de gravidade política brasileira, a grande classe média. A representação política de centro [...] sente-se incomodamente sem condições de externar suas convicções [...] [devido ao] patrulhamento ideológico [da esquerda - FF]" (JB, 05/02/1987, ênfases nossas).

Este editorial "fecha o círculo", já que a "maioria" é, então, a classe média, setor também fortemente representado pela grande imprensa. É claro que a maior parte desta classe, embora proletarizada, possui valores mais próximos às elites, sendo também por isso alvo da grande imprensa. Dessa forma, é importante ressaltar a  recorrência com que a classe média aparece nos editoriais, sobretudo em momentos cruciais como este, dada a reconfiguração de direitos e deveres que expressa.

Por outro lado, o fato de que os constituintes à esquerda e ligados a causas populares e nacionalistas conseguiram vitórias importantes fez com que a grande imprensa reagisse de dois modos concomitantes: desqualificando as idéias, os interesses e as pessoas componentes destes agrupamentos, e concitando os "liberais" - eufemismo para todo tipo de interesses patronais e conservadores - a agirem e se organizarem com vistas a derrotar os adversários/inimigos. Não raro, os empresários - nacionais e estrangeiros - e o próprio governo federal foram chamados ao combate, isto é, foram alertados para o fato de que deveriam exercer todo o seu poder de influência com vistas a barrar a "esquerdização" do país, o que significa, portanto, uma clara e aberta contenda.

Tal clareza e ostensividade são observáveis amiúde, tendo nos editoriais a síntese deste verdadeiro combate. Vejamos como a própria linguagem assume este caráter belicoso, mesmo no que tange ao chamamento aos aliados. Segundo o JB: "Ou o pensamento da empresa privada e das tendências políticas liberais se articulam para produzir um modelo melhor que o modelo autárquico, ou estaremos abrindo o caminho para o fogo que os sopradores das brasas isolacionistas querem acender" (JB, 08/06/1987).

Embora esteja se referindo às restrições ao capital estrangeiro, este chamamento é extensivo a todos os temas-chave identificados pelo jornal. A articulação entre capital e liberalismo é reveladora, mesmo que majoritariamente este último esteja associado, de forma genérica, à idéia de "maioria". O "Centrão", que em verdade fora requerido pela grande imprensa, quando surge é saudado como um verdadeiro acontecimento, uma vez que selaria o encontro do "Brasil real" com sua representação. Toda vez, contudo, que este agrupamento votou teses próximas às dos nacionalistas foi também criticado pelos jornais, que, dessa forma, chamam sua atenção e procuram "corrigir seus erros", isto é, dirigi-lo.

A FSP, mesmo que tivesse por vezes criticado o caráter conservador do "Centrão", apoiou-o devido à contenda ideológica com a esquerda. O jornal acredita que boa parte das medidas aprovada pela influência da esquerda, entre as quais as restrições ao capital estrangeiro, seria nociva ao país: "A defesa de um desenvolvimento equilibrado se deturpa [...], o ímpeto nacionalista se distorce numa defesa da estagnação. São estes os riscos que [...] apresentam-se com especial nitidez. Resta saber se o Congresso constituinte saberá afastá-los, num clima de consenso e ampla sustentação da opinião pública, ou se a opção pela xenofobia e pelo atraso estará [...] consagrada no novo texto constitucional" (FSP, 24/04/1988, ênfases nossas).

Portanto, a mesma dicotomia aparece na auto-intitulada "moderna" FSP. A própria idéia de que o "consenso" deveria ser alcançado a partir de sua estruturação na "opinião pública" - isto é, a opinião da própria imprensa - implica um círculo vicioso, uma vez que não só o "consenso" é sinônimo de hegemonia, como também a opinião "pública" é, em verdade, privada, ou seja, é a opinião de seus formadores, dos "aparelhos privados de hegemonia". Esta equação é cara sobretudo à FSP, mas vale para todos os jornais.

Mas a linguagem beligerante encontra em OG e em OESP seus representantes máximos, por meio de concitações peremptórias. No caso de OG, seu governismo inveterado imiscui-se à defesa do caráter patronal-conservador da Constituição, uma vez que o apoio tanto ao presidencialismo quanto ao mandato de Sarney (tal como este o requereu, isto é, 5 anos) foi militantemente afirmado pelas Organizações Globo. Quando da redução do mandato para 4 anos - apenas posteriormente mudada -, OG assim se posicionou: "Vamos ao plenário; se necessário contra um golpe de Estado, vamos às urnas" (OG, 17/11/1987, ênfases nossas). Ir às urnas seria extinguir a Constituinte e buscar uma (supostamente ausente) legitimação popular dos constituintes via eleições. Para além do casuísmo da proposta e do governismo histórico do jornal, importa-nos observar sua participação política, expressa na afirmação em primeira pessoa do plural.

Nos temas cruciais das ordens econômica e social na Constituinte, o tom é o mesmo. Quando, por exemplo, o "Centrão" se estruturou, com a divisão do PMDB, e conseguiu algumas vitórias importantes, OG o concitou a uma vitória total sobre a esquerda e os nacionalistas, ao afirmar que: "Não cabe aos moderados colocarem panos quentes, contemporizando em questões da gravidade [...] [como a] concessão de estabilidade no emprego após três meses [...]. A divisão [do PMDB] já existe [...]. Só resta consagrá-la. [...]. Que os moderados do PMDB assumam a divisão para o restabelecimento da Aliança Democrática [...]" (OG, 07/07/1987).

O jornal pressiona, veta, orienta, dirige; numa palavra, procura organizar interesses, funcionando como uma espécie de intelectual coletivo do establishment. Sobretudo nos momentos de derrota, mesmo que parcial, assim como nas circunstâncias em que a base governista se dispersou, a linguagem e o clima tornam-se mais exuberantes e candentes: "Não há outro caminho senão o de todos nos unirmos pondo acima de superadas divergências ideológicas ou de futuras disputas eleitorais os supremos objetivos da Nação" (OG, 05/05/1988, ênfases nossas).

A clareza meridiana desta passagem sintetiza o papel da grande imprensa. Este editorial não apenas foi publicado em primeira página como ocupou largamente a sua parte superior (a área mais nobre e visível do jornal), além de ter sido assinado pelo próprio Roberto Marinho. E se intitulou justamente "Os supremos objetivos da Nação", sinônimo dos interesses defendidos pelos periódicos. Trata-se da velha estratégia de universalização dos interesses particulares, possível perfeitamente nas entidades unilaterais como a grande imprensa. Para além desse aspecto, percebe-se claramente como OG chama a atenção dos aliados, cobrando-lhes unidade.

Ora, se esse expediente fora utilizado por periódicos pragmáticos, o que dizer então do conservador e tradicionalista OESP? Com maior incisividade ainda, concitou os "liberais" à luta. A cada passo da Constituinte a grande imprensa fora se posicionando, ora recuando, ora avançando, ora abrindo espaços à negociação. Dessa forma, acompanhar a movimentação dos jornais nesse momento decisivo da elaboração da nova Constituição encerra muitas lições, dada a importância de temas a serem votados num espaço de tempo relativamente curto.

Para OESP, "A hora é de os liberais acordarem - porque depois será tarde" (OESP, 05/02/1987). Afinal, houve inúmeras batalhas no Congresso Constituinte: a da eleição dos membros para a Comissão de Sistematização, a da modificação do Regimento, as das votações nos dois turnos, entre outras. Conforme as teses consideradas prejudiciais foram sendo aprovadas, sobretudo quanto aos direitos sociais, assim o atônito OESP se posicionou, com vistas a reagrupar as forças aliadas: "A votação espelha a falta de governo e o caos mental que corroem o Brasil; a incapacidade de os empresários se articularem, de maneira ordenada [...], a indecisão de muitos constituintes, que não sabiam como votar assunto dessa magnitude [os direitos sociais - FF] porque as lideranças empresariais ou políticas não souberam transmitir instruções precisas" (OESP, 11/10/1987, ênfases nossas).

No limite, este editorial faz uma espécie de mea culpa, já que, aparentemente, a grande imprensa teria demonstrado inabilidade para dirigir e orientar seus representados. Para além disso, contudo, é clara a postura de OESP no sentido de cobrar, repreender, instigar, mas sem nunca "jogar a toalha". Tal como numa luta de boxe, por mais que o lutador esteja perdendo, é papel do treinador orientá-lo e lhe dar estímulo. É isso que sobretudo OESP faz exaustivamente, acompanhado pelos seus pares. Por isso, para o jornal: "[...] os liberais brasileiros têm diante de si ingente tarefa; se não se organizarem para combater o populismo estatizante [...], o Brasil corre o risco de regredir [...]" (OESP, 20/11/1987, ênfases nossas). A atuação da imprensa, como se vê, foi notavelmente militante.

Considerações finais

Observamos, por meio dos exemplos acima, como os periódicos diários da grande imprensa fizeram convergir suas posições quando o que esteve em jogo foi o conflito social, sobretudo os direitos sociais e o direito à greve. Demonstraram, com isso, seu conservadorismo, o que os distancia de suas autopropaladas filiações às teses liberal-democráticas.

Embora tivessem tradições editoriais e ideológicas distintas, expressaram grande homogeneidade, com uma ou outra variação, uma vez que a luta de classes - ou simplesmente o conflito distributivo, que não deixa de ser a forma "pacífica" da luta de classes - pareceu ser o limite intransponível à concepção de democracia da grande imprensa brasileira, sobretudo num momento tão crucial para nossa história: a transição para a democracia. O veto à democratização, por meio da introdução de direitos sociais e políticos para as classes populares quando da elaboração da nova Constituição - num país marcado por uma longa história de autoritarismo -, demonstra o papel da grande imprensa como aparelho privado de hegemonia, tornando-a defensora do "capital global" e das classes médias, em detrimento da grande massa de proletários do país.

Portanto, as implicações dessa posição para a democracia foram enormes, afetando diretamente a sociedade brasileira, dado o poder de persuasão dos periódicos; mas há igualmente implicações conceituais importantes, como é o caso do papel da própria teoria democrática, que, ao considerar a "liberdade de expressão" como um pressuposto da democracia, não zela suficientemente pela sua contraface, isto é, a "responsabilidade da expressão". Se o fizesse, contribuiria muito para a democracia, tendo em vista os brutais impactos acarretados pela expressão da opinião. Certamente, esse não foi o papel da grande imprensa brasileira no período em foco.

----------

Francisco Fonseca é professor de Ciência Política da FGV/SP.

----------

Notas

[1] Este trabalho é uma rediscussão de aspectos de meu livro O consenso forjado – a grande imprensa e a formação da agenda ultraliberal no Brasil. São Paulo: Hucitec, 2005.

[2] Trata-se dos quatro principais periódicos diários: Jornal do Brasil (JB); O Globo (OG); Folha de S.Paulo (FSP); e O Estado de S. Paulo (OESP).

[3] Coutinho, Carlos Nelson. Marxismo e política: a dualidade de poderes e outros ensaios. São Paulo: Cortez, 1994, p. 54-5. (Preferimos a definição de um dos principais exegetas de Gramsci no Brasil, dada a sua capacidade de síntese em contraste com as notas esparsas do próprio pensador italiano nos Cadernos do Cárcere, assim efetuadas, como se sabe, em razão das condições em que foram escritas). Observe‑se, por outro lado, que esta perspectiva gramsciana distancia‑se relativamente dos "aparelhos ideológicos de Estado", tal como entendidos por Louis Althusser, devido justamente à ausência (igualmente relativa) de autonomia destes aparelhos em relação ao aparelho estatal. Cf. Althusser, Louis. Idéologie et appareils idéologiques d'État. Paris: Éditions Sociales, 1976.

[4] Estas três teses representam, respectivamente, a idéia de que as "reformas não levarão a nada", "ameaçarão direitos anteriormente adquiridos" e "terão o efeito contrário ao pretendido". Cf. Hirschman, Albert. A retórica da intransigência (perversidade, futilidade e ameaça). São Paulo: Cia. das Letras, 1985.

[5] A imagem de que, invariavelmente, pequenos "grupos radicais" comandam e manipulam as greves pretende desqualificar, de antemão, qualquer movimento grevista, pois lhe retira a legitimidade.

Bibliografia

Althusser, Louis. Idéologie et appareils idéologiques d'État. Paris: Éditions Sociales, 1976.

Bobbio, Norberto. Liberalismo e democracia. São Paulo: Brasiliense, 1988.

Bourdieu, Pierre. O poder simbólico. Lisboa: Difel, 1989.

Eagleton, Terry. Ideology. An Introduction. Londres: Verso, 1991.

Cockett, Richard. Thinking the Unthinkable (Think-Tanks and the Economic Counter-Revolution, 1931-1983). Londres: Harper Collins, 1995.

Coutinho, Carlos Nelson. Marxismo e política: a dualidade de poderes e outros ensaios. São Paulo: Cortez, 1994.

Fonseca, Francisco.  "O conservadorismo patronal da grande imprensa brasileira". Revista Cesop (Centro de Estudos de Opinião Pública). Campinas: Cesop/Unicamp, out. 2003.

----------. "Mídia e democracia: falsas confluências". Revista de sociologia e política, n. 22, 13-24 jun. 2004. Universidade Federal do Paraná (Dossiê Mídia e Política).

Fukuyama, Francis. The End of History and the Last Man. Nova York, 1992.

Gramsci, Antonio. Cadernos do cárcere (6 v.). Rio de Janeiro: Civ. Brasileira, 1999-2002.

Hardin, Russel. Liberalism, Constitutionalism, and Democracy. Oxford: Oxford University Press, 1999.

Hirschman, Albert. A retórica da intransigência (perversidade, futilidade, ameaça). São Paulo: Cia. das Letras, 1985.

Hobsbawm, Eric. A era dos extremos: o breve século XX (1914-1991). São Paulo: Cia. das Letras, 1995.

Kreinz, Glória  A. R. Ideologia, notícia e mercado - a pós-modernidade tecnocrática da Folha de S. Paulo. Tese de Doutoramento, ECA/USP, 1990.

Kucinsky, Bernardo. Jornalismo econômico. São Paulo: Edusp, 2001.

Kunczick, Michael. Conceitos de jornalismo. São Paulo: Edusp, 1997.

Lins da Silva, Carlos Eduardo. Os mil dias. Tese de Livre Docência. ECA/USP, 1987.

Lippmann, Walter. Public Opinion. New York, Free Press Paperbacks, 1997.

Marcondes Filho, Ciro (Org.). Imprensa e capitalismo. São Paulo: Kairós, 1984.

Melo, José Marques de. A opinião no jornalismo brasileiro. Petrópolis: Vozes, 1994.

Parsons, Wayne. The Power of the Financial Press. New Jersey, Rutgers University Press, 1990.

Reis, Fábio Wanderly e O’Donnell (Orgs.). A democracia no Brasil: dilemas e perspectivas. São Paulo: Vértice, Editora Revista dos Tribunais, 1988.

Saunders, Peter e Harris, Colin. Privatization and popular capitalism. Buckingham: Open University Press, 1994.

Taschner, Gisela. Folhas ao vento. Análise de um conglomerado jornalístico no Brasil. São Paulo: Paz e Terra, 1992.



Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

  •