1. Uma rosa para Antonio
Algumas décadas antes de nossa era, enquanto o Império Romano resplandecia, levantou-se portentosa pirâmide funerária, a sudoeste de Roma, em honra ao digno e certamente mui rico tribuno Caio Cestio Epulo. Quando as coisas começaram a desandar para os senhores do mundo, o monumento apoiou as muralhas aurelianas que, em 275 d.C., protegeram a capital imperial.
Na Idade Média, Roma, o antigo umbigo do mundo, caiu dos seus dois milhões para algumas mÃseras dezenas de milhares de habitantes. Neste então, a pirâmide de Caio Cestio resistia ainda, quase intacta, ao lado das ruÃnas da muralha violada, em região agora desertada pelos moradores.
Muito além dos tempos medievais, como não havia salvação fora da Igreja - Extra ecclesiam nulla salus! -, apenas os católicos comportados eram enterrados nos campos santos da cristandade. Sendo assim, onde eram sepultados os não-católicos que viveram, em Roma, nos longos tempos de reino papal?
Infelizes aqueles que morriam longe da seu lar paterno, enquanto os pontÃfices dominaram a Cidade Eterna. Se professavam credo tido como falso, ou, pior ainda, credo nenhum, eram emburacados, na calada da noite, ao pé das muralhas caÃdas, ali onde mulheres tristes alugavam seus corpos destruÃdos.
Longton, um estudante desconhecido de Oxford, foi o primeiro protestante positivamente sepultado, em 1738, à luz de archotes, à sombra da Pirâmide e dos muros aurelianos. Talvez por indicação municipal prenhe de presunçosa arrogância, outros não-católicos foram enterrados nesse local que, pelo abandono e afastamento, sediava desbragados piqueniques populares.
Nos anos 1740, a mal-afamada paragem já era conhecida como cemitério dos Protestantes. Num tempo em que a Igreja açulava o povaréu, para melhor manobrá-lo, contra ciganos, judeus e cristãos reformados, as desprotegidas sepulturas eram comumente roubadas e profanadas. Em 1817, diplomatas não-católicos reivindicaram ao Estado PontifÃcio o muramento do cemitério.
Em 1822, sob a justificativa de que a proteção dificultaria o acesso à Pirâmide, as autoridades cederam e cercaram um terreno vizinho ao campo santo que, apenas em 1824, foi protegido por uma simples vala, onde a população passou a lançar cachorros e gatos mortos. Em 1894, a compra de outro terreno completou o perÃmetro atual do cemitério.
Como se temesse ainda as vexações passadas, o cemitério dos Protestante quase se esconde por detrás de seus altos muros. Porém, a pesada porta de ferro abre-se generosa àqueles que nela batem para visitar algum dos quatro mil não-católicos alemães, gregos, ingleses, norte-americanos, russos, etc., que ali jazem.
Parcialmente localizado sobre o declive de uma pequena colina, o cemitério encanta pelo despojamento elegante das lápides e pela discrição contida das epÃgrafes, gravadas no idioma dos falecidos. Uma contenção de linguagem lapidar, a bem da verdade, nem sempre voluntária.
Até 1870, quando os exércitos italianos tomaram Roma, separando-se Estado e Igreja, as autoridades pontifÃcias proibiram que se afixassem nas lápides cruzes e motes sobre a vida eterna, já que o único passaporte válido para a eternidade era o expedido pela Igreja que reinava soberana sobre a cidade.
O cemitério dos Protestantes acolhe inúmeros arquitetos, diplomatas, escritores, escultores, pintores, poetas, etc. Chegados de diversos pontos principalmente da Europa, terminaram seus dias na Cidade Eterna, atraÃdos sobretudo pelas belezas da penÃnsula e das ilhas itálicas. Paradoxalmente, o simpático folheto que se encontra à venda no centro administrativo quase não se refere ao túmulo 145, ao pé do muro da ala direita do campo santo.
Um simples ramo de oliveira destaca-se timidamente sobre a lápide lisa, semicoberto por informações que perturbam pelo laconismo: Antonio Gramsci, Ales, 22.1.1891; Roma, 27.4.1937.
Num gesto prenhe de simbolismo, Tatiana Schucht, a camarada e cunhada russa, depositou, em mais um ato de fidelidade, nessa terra de estrangeiros que, pelos azares do nascimento, não comungavam com a fé dominante, as cinzas do pequeno homem de saúde fraca e corpo desconforme que, por sua exclusiva vontade, jamais se vergou ao arbÃtrio dos poderosos, bebendo, por isso, a fundo, o que mais amargo servia a taça da vida.
Duas pequenas árvores crescem por detrás do túmulo simples. Três buquês de rosas e cravos vermelhos, ainda frescos, dizem que há que se fazer para que o sacrifÃcio não tenha sido vão.
2. Antonio Gramsci lia Paulo Coelho
Há algumas quase unanimidades entre nossos intelectuais. Uma delas é certamente Antonio Gramsci, o sagaz comunista italiano, morto aos 46 anos, após viver uma década nas cárceres fascistas. Nem que seja transversalmente, sobretudo as categorias que plasmou, nos seus Cadernos do cárcere, sobre a cultura, a sociedade e o Estado, encontram crescente consenso entre os pensadores nacionais.
É sobretudo o refinamento de um marxismo de profunda raÃzes humanistas e ocidentais que cativa fortemente nossos intelectuais. Paradoxalmente, a simpatia deve-se também à ampla operação - empreendia nos anos 1970 - de arbitrária ruptura da visão de mundo de Gramsci da preocupação central de sua obra - a luta pelo poder.
Mais coesa ainda é a unanimidade sobre a literatura de Paulo Coelho. Há quase total acordo entre os pensadores brasileiros que ela não presta, não deve ser lida, não merece ser estudada e discutida. Já se disse sobre a ficção coelhista, radicalizando esta concepção: "Não li e não gostei!"
Devido a tal visão, no Brasil, avolumam-se investigações acadêmicas sobre ficcionistas e ensaÃstas, nacionais e estrangeiros, tidos como eruditos, de público liliputiano, e rejeita-se com quase asco a discussão da ficção ou do ensaÃsmo triviais. O sucesso multitudinário de um Paulo Coelho ou mesmo de um Eduardo Bueno merecem, quando muito, sumárias desqualificações.
Passa despercebido a muitos admiradores de Gramsci que entre os quatro grandes temas que se dispôs a investigar na prisão encontrava-se precisamente o estudo da literatura folhetinesca, como assinalou em carta de 19 de março de 1927, ao anunciar a intenção de redigir ensaio sobre o "gosto popular na literatura". Ou seja, sobre os José Mauro de Vasconcellos e assemelhados de sua época.
Em 22 de abril de 1929, escreveu que, durante sua prisão em Milão, lera muitos romances de "terceira ordem", especialmente "populares", sobretudo na procura de algumas respostas: "Por que esta leitura é a mais lida e a mais publicada? Quais necessidades satisfaz? A quais aspirações responde? Quais sentimentos e pontos de vistas estão representados nesses livrecos, para agradar tanto?"
Definitivamente, a preocupação com a ficção trivial não era inocente passatempo diletante de prisioneiro policiado nas suas leituras. Gramsci escrevera sobre esse tipo de literatura quando jovem e registrou, mais tarde, suas reflexões maduras sobre as categorias de "romance popular" no terceiro volume dos Cadernos do cárcere, lamentavelmente não concluÃdas [1].
Gramsci acreditava que, em qualquer paÃs, existe nação "desconhecida, que não se vê, muito diversa da aparente e visÃvel". Na Itália, o fenômeno seria mais profundo do que nas "chamadas nações" civilizadas. Devido à verdadeira tradição de "casta", o intelectual italiano banharia-se nas águas lÃmpidas - e mais seguras - da superfÃcie, sem mergulhar nas agitadas profundezas oceânica da cultura e da ideologia popular.
Gramsci acreditava que a revolução italiana nasceria da aliança entre o operário nortista e o camponês meridional. Porém, lembrava que as massas rurais integravam, em forma subordinada, bloco histórico no qual intelectuais pequeno-burgueses sulistas de origem agrária traduziam e difundiam, entre os subalternizados, visões de vida das elites, elaboradas pelos intelectuais nacionais orgânicos do poder.
Com o estudo da função dos intelectuais na história italiana até a Unificação, procurou entender a construção dos mecanismos ideológicos e culturais de dominação, através dos quais as concepções de vida das elites, vulgarizadas e trivializadas, eram incorporadas à consciência dos trabalhadores, mantendo-os no consenso, ou seja, na submissão pacÃfica.
Gramsci propunha que, na Europa Ocidental, por atrás do Estado, trincheira avançada da ordem burguesa, se encontrasse verdadeira casamata da organização social em vigor, constituÃda pelo modo de viver, de pensar, de agir, etc. da imensa maioria da sociedade civil, diretamente dependente da concepção de mundo das elites.
Através da crÃtica dessa ideologia, procurava lançar as bases para a criação de interpretação proletária de mundo que superasse, dialética e antagonicamente, as representações elitistas. Inicialmente, a nova percepção do mundo restringiria o consenso popular ao Estado e, num segundo momento, sustentaria e consolidaria o assalto ao poder, apoiando e facilitando a constituição da ordem socialista.
Até a morte, preocupou-se com a compreensão dos mecanismo ideológicos de dominação, estudando minuciosamente o que a população gostava, sem irritar-se, em forma elitista, com o que deveria ler, mas não lia. Queria decifrar os mecanismos da narrativa trivial que envenenam a forma de sentir dos explorados, na procura do necessário antÃdoto.
Se fosse vivo e morasse no Brasil, certamente na biblioteca de Gramsci encontrariam-se os livros de Paulo Coelho & cia., e ele se reservaria um tempinho para assistir ao Ratinho, às novelas e ao Jornal Nacional, na dura luta para decifrar as infinitas esfinges que devoram sem cessar a alma da sofrida gente brasileira.
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Mário Maestri é professor do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Passo Fundo. Estes textos foram originalmente publicados no Correio da Cidadania, em 24 de janeiro e em 24 de março de 2001.
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Nota
[1] O autor refere-se ao terceiro volume da edição italiana dos Cadernos, organizada por Valentino Gerratana, em particular aos cadernos 21 ("Problemas da cultura nacional italiana. 1. Literatura Popular") e 23 ("CrÃtica literária"). Estes dois cadernos aparecem integralmente no v. 6 da edição brasileira dos Cadernos do cárcere, publicados pela Civilização Brasileira.