Marcelo Pedroso Goulart. Elementos para uma teoria geral do Ministério Público. Belo Horizonte: Arraes, 2013. 310p.
Marcelo Pedroso Goulart é, atualmente, o maior intérprete da nova doutrina do Ministério Público brasileiro. É dele a construção teórica, crÃtica e didática em torno dos dois modelos do Ministério Público, o demandista e o resolutivo, que hoje é fundamental para a compreensão da função constitucional do Ministério Público e, também, para efetivar as mudanças culturais e estruturais necessárias à Instituição.
Há mais de duas décadas conheço o trabalho de Marcelo Goulart como promotor de justiça fundador e ex-presidente do Movimento Ministério Público Democrático. Aliás, muito do que sei sobre teoria e prática do Ministério Público, confesso, devo ao Marcelo. Isso não só pelas nossas conversas, pelas suas palestras, cursos, artigos, teses defendidas em congressos e livros. Fui estagiário do Ministério Público do Estado de São Paulo nos anos de 1990 e 1991, na comarca de Sertãozinho, interior do Estado, quando Marcelo Pedroso Goulart e Antônio Alberto Machado eram os promotores de justiça daquela comarca. Foi nesse perÃodo que comecei a conhecer, por uma nova e renovadora visão, a instituição da minha vida profissional: o Ministério Público da transformação social. O meu primeiro trabalho de pesquisa universitária, que abordou o tema do Acesso à Justiça, escrito em 1990 e 1991, foi prefaciado pelo Marcelo Goulart.
Por isso, os queridos leitores devem imaginar a alegria e a honra que senti ao receber o convite para fazer a apresentação de mais essa extraordinária obra, já há anos aguardada por todos nós, de Marcelo Pedroso Goulart.
Marcelo Goulart é um profissional com extrema capacidade e singular inteligência, que consegue reunir duas habilidades exercidas, em perfeita sintonia, de maneira genuÃna: a teórica e a prática. A leitura do Ministério Público como instituição constitucional diante dos grandes desafios da realidade social é algo impressionante em Marcelo Goulart. A sua atuação prática como Promotor de Justiça sempre manteve a perfeita coerência com a sua interpretação constitucional sobre a função do Ministério Público. Marcelo consegue levar para a prática o que escreve.
Para Marcelo Goulart, a Constituição de 1988 conferiu ao Ministério Público brasileiro um novo perfil constitucional. Do ponto de vista polÃtico, o Ministério Público passou a ser agente da vontade polÃtica transformadora. Do ponto de vista jurÃdico-constitucional, o Ministério Público foi estruturado para exercer a função de promoção dos valores democráticos, na condição de instituição catártica, universalizante e não-corporativa. Porém, esclarece Goulart que o Ministério Público ainda não se afirmou e vive uma crise entre o modelo antigo e o seu novo modelo constitucional: "[...] O momento é transicional e a nova função polÃtica não foi inteiramente incorporada. Ainda não se formou a vontade coletiva-interna capaz de garantir a unidade necessária à atuação voltada à transformação social, embora se caminhe nesse sentido".
Para Goulart, essa crise deve ser vista como um grande desafio para mudanças importantes, conceituais e práticas, e não como algo ruim. Essas mudanças estariam consubstanciadas em dois movimentos que não se completaram ainda.
O primeiro movimento, que ele qualifica como de natureza catártica, exige a superação do momento corporativo para o momento ético-polÃtico e pressupõe: 1) a elaboração de nova doutrina institucional, baseada no conjunto de valores e princÃpios democráticos que integram a concepção de sociedade e de Estado acolhida na Constituição da República; 2) a definição de polÃticas institucionais que norteiam a atuação do Ministério Público para o cumprimento de metas concretas e racionais, possibilitando a efetiva contribuição da Instituição para a transformação social; 3) a mudança de mentalidade dos membros da Instituição a garantir adequação psicológica para o cumprimento da estratégia institucional.
O segundo movimento, que seria de natureza estrutural, exige reformas que possibilitem o cumprimento da estratégia e da missão da Instituição, sendo elas: 1) estruturação espacial e organizacional do Ministério Público; 2) reestruturação da carreira; 3) revisão das atribuições dos membros da Instituição.
Marcelo deixa claro no livro que o Ministério Público não poderá se conformar com a realidade de desigualdades e de injustiças e, por isso, a Instituição deve se atualizar para imprimir uma prática transformadora da realidade. Nesse contexto, o autor afirma que o Ministério Público seria um veÃculo privilegiado da sociedade brasileira para o seu caminhar visando uma nova realidade social, mais democrática, mais justa, fraterna e igualitária.
Em sua estruturação didática, observa-se que o livro está dividido em cinco partes, contendo um sumário analÃtico que facilita, sobremaneira, a consulta e a pesquisa.
Na primeira parte, o autor faz a análise do Ministério Público na Organização PolÃtica do Estado Brasileiro, ocasião em que conclui que a Instituição, em seu movimento de transição, deixou de ser agente da dominação via coerção legal a partir da sociedade polÃtica para ser agente da vontade polÃtica transformadora como órgão da sociedade civil. Assim, na visão de Marcelo Goulart, o Ministério Público na democracia brasileira é instituição autônoma e integra a sociedade civil.
Na segunda parte, o autor discorre sobre Ministério Público e Democracia, conferindo atenção especial ao capÃtulo referente ao Ministério Público e a Construção da Democracia Substantiva, onde é enfatizada a função constitucional do Ministério Público como agente da vontade polÃtica transformadora.
Na terceira parte, Marcelo Goulart concentra seus estudos nos PrincÃpios, na Estrutura e nas Funções Institucionais do Ministério Público.
Quanto aos princÃpios, dá especial destaque ao princÃpio da unidade, que na visão do autor deve ser revisitado para merecer uma nova concepção ligada ao objetivo estratégico do Ministério Público. Assim, a Instituição, por intermédio do conjunto de seus membros, deve estar voltada para o objetivo estratégico, que seria a promoção do projeto de democracia participativa, econômica e social consagrado na Constituição. Para Goulart, o membro do Ministério Público não poderá invocar o princÃpio da independência funcional para deixar de cumprir metas, prioridades e ações fixadas nos Planos e Programas de Atuação da Instituição.
Sobre a Estrutura, desenvolve o seu estudo tanto em relação ao Ministério Público da União quanto aos Ministério dos Estados. Em tópico especÃfico, o autor discorre sobre o Conselho Nacional do Ministério Público.
Estuda as Funções Institucionais do Ministério Público a partir de suas relações com a missão e o objetivo institucionais. Para o autor, do objetivo estratégico decorre a missão institucional do Ministério Público. A missão constitucional do Ministério Público é a defesa da ordem jurÃdica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponÃveis, nos termos do art. 127, caput, da CF. Por outro lado, as funções institucionais do Ministério Público são classificadas por Marcelo Goulart como essenciais e acessórias. As essenciais, que são atividades fundamentais e indispensáveis ao cumprimento da missão institucional, estão arroladas no art. 129 da CF. As funções acessórias são atividades secundárias que são exercidas pelo Ministério Público, mas desde que compatÃveis com sua finalidade, apesar de não integrarem a essência da sua missão institucional. São aquelas atividades que não estão previstas na Constituição, mas que são autorizadas pela norma de encerramento prevista no inciso IX do art. 129 da CF, com destaque para as seguintes hipóteses: defesa dos direitos ou interesses individuais homogêneos; defesa dos interesses individuais indisponÃveis da criança, do adolescente e do idoso; proteção e fiscalização das funções etc.
Na quarta parte do livro, Marcelo Goulart aprofunda a análise sobre O Ministério Público e os Desafios do Mundo Contemporâneo, ocasião em que são enfrentados assuntos importantes para a compreensão do Estado e dos desafios do Ministério Público como instituição constitucional, com destaque para: a) a crise e os limites do Estado Social; b) a ofensiva neoliberal; c) a globalização e a erosão da soberania do Estado; d) a reconstrução dos direitos sociais e o resgate da capacidade de intervenção do Estado na era da globalização; e) o Ministério Público e as obrigações dos Estado na era da globalização; f) o Ministério Público como instrumento do reformismo transformador.
Na quinta e última parte do livro, Marcelo Pedroso Goulart aprofunda a análise sobre O Ministério Público e a Construção da Democracia no Brasil, abordando questões fundamentais relacionadas, em grande parte, com a sua riquÃssima experiência prática como promotor de justiça. Assim, o autor estuda nesta parte da obra: a) O Ministério Público e a Proteção da Criança e do Adolescente; b) O Ministério Público e a Defesa do Meio Ambiente; c) O Ministério Público e a Questão Agroambiental.
Ao final, o autor apresenta as referências utilizadas na elaboração do livro, que são um guia seguro para o aprofundamento de estudo crÃtico sobre o Direito, a Democracia, o Estado e a PolÃtica.
O autor e a Arraes Editores estão de parabéns pela publicação deste verdadeiro manual sobre teoria do Ministério Público, obra singular, profunda, didática e que aborda com muita precisão de raciocÃnio, com coerência teórica e prática, as principais questões que envolvem o Ministério Público brasileiro como instituição constitucional vocacionada para a defesa dos valores democráticos ligados à transformação social.
Tenho a absoluta certeza que a obra será um sucesso nacional por constituir-se um trabalho de consulta obrigatória para todos os membros do Ministério Público, estudantes do Direito, advogados, juÃzes e todos aqueles que se interessarem pelo estudo teórico ou prático do Ministério Público brasileiro.
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Gregório Assagra de Almeida é promotor de Justiça no Estado de Minas Gerais e assessor de Projetos e de Articulação Interinstitucional da Secretaria de Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça.