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Vinícius de Moraes: meu tempo é quando

Jaldes Reis de Meneses - Julho 2010
 

Entre as muitas histórias que se podem contar sobre Vinicius de Moraes (1913-1980) -, cujos 30 anos de morte o Brasil lembrou há poucos dias (sexta-feira, 09/07) e cujo centenário de nascimento se dará daqui a três anos -, começo com uma que reúne em único ato política e poesia.

O folclore do poeta é vastíssimo, de modo que procurarei me abster de temas como a bebida, os amores e o modo de viver da zona sul carioca. Muitas vezes, o folclore lança brumas, obscurece a recepção da obra daquele que é, sem favor, um dos sete principais poetas modernos brasileiros do século XX, quase ou no mesmo nível de Drummond, Cabral, Cecília Meireles, Manuel Bandeira, Jorge de Lima e Murilo Mendes.

Ao que parece, o poeta recebeu a notícia de cassação do Itamaraty, em visita à casa de sua mãe no Brasil, na esteira da edição do AI-5. Em seguida, em 1969, certamente para arranjar a vida nova, viajou em excursão a Portugal, onde teve o amargor de enfrentar, na porta do Teatro, o protesto de direita de estudantes da juventude salazarista. Aconselhado a evitar a aglomeração e sair pelos fundos do teatro, o poeta fez justamente o contrário. Fez questão de se dirigir à porta principal e começou a recitar a plenos pulmões, emocionado e em voz alta, um curto soneto, sem dúvida um dos principais de sua extensa obra - "Poética", escrito em Nova York, 1950 -, que começam e terminam assim:

De manhã escureço
De dia tardo
De tarde anoiteço
De noite ardo.

A oeste a morte
Contra quem vivo
Do sul cativo
O este é meu norte.

Outros que contem
Passo por passo:
Eu morro ontem

Nasço amanhã
Ando onde há espaço
- Meu tempo é quando.

Contam os presentes - ou a lenda, não saberia dizer ao certo - que o apupo original transformou-se em ovação (os estudantes salazaristas, ao menos, tinham sensibilidade poética).

Gosto muito de "Poética" e espero que, após a leitura, o leitor tenha a real percepção do exercício de contenção desses versos, da capacidade cirúrgica do poeta: cada palavra encontra o lugar certo, sem tirar nem pôr. O resultado é um efeito de fluxo contínuo parecido com a própria sensação corrida de tempo, contraditório tanto em relação ao espaço como aos pontos cardeais da geografia; se assim o fosse, seria simplesmente mais um entre tantos poemas contempladores do tempo que corre. Todo soneto deve ter um fecho. A nota pessoal dissonante de Vinicius, a provocar estranhamento, é, com licença da palavra, "adverbializar" o conectivo de tempo, retirando-lhe exatamente a função de conectivo. Ele poderia fechar o soneto com um anódino: "meu tempo é hoje" ou coisa parecida; no entanto, explode na página o inusitado: "meu tempo é quando". Neste caso, adverbializar significa subjetivar, torcer o tempo. Não se trata de negar o que não pode ser negado - o misterioso contínuo do tempo -, mas de operar um jogo de inversão de que tratarei a seguir.

A escolha de Vinicius em enfrentar a horda de estudantes fascistas com precisamente esses versos coincidia, em seu sentido profundo, com o principal pensamento imerso no poema: o tempo é fluxo inevitável, mas também surge a ocasião, o momento de agir. De repente, o poema politizou-se. Em termos do enfrentamento às ditaduras daqui e alhures, passava o seguinte recado: os tempos podem ser duros, mas meu tempo é outro. O "hoje" é inevitável, sem dúvida, mas "meu tempo é quando".

A poética de Vinicius sempre esteve cercada de incompreensão. Foi criticado por sua adesão à música popular por amigos como Rubem Braga, entre outros. Santa incompreensão: Vinícius, além de ser um dos nossos grandes letristas da música popular, comportou-se como um renovador desde a bossa nova, trouxe a linguagem coloquial, o diminutivo, a gíria, dando um novo frescor à canção.

Neste ínterim, vale observar que embora alguns parceiros tenham musicado antigos sonetos (Toquinho e Tom Jobim, principalmente) e haja um frequente trânsito de imagens da poesia para a música, o Vinicius da canção é diferente do poeta, não havendo correspondência biunívoca entre um e outro. Em termos de canção popular, o poetinha logo percebeu a diferença estrutural entre canção e poesia, ou seja, o caráter heterotélico (o que tem finalidade ou sentido além ou fora de si) da letra da canção, sempre a requisitar um fundo musical, em contraponto à autonomia autotélica do poema. Por isso, foi um letrista excepcional.

Por outro lado, na poesia escrita, Vinicius na maioria das vezes se deu melhor nas formas fixas (o soneto, a balada, a elegia) do que no verso livre. Aparentemente, na época moderna, as formas fixas ficaram no passado, e muitos fizeram esta acusação superficial ao poeta. Determinadas reavaliações críticas recentes da poesia de Vinicius começam a dissipar o equivoco de flagrar passadismo no uso de formas fixas, a exemplo do trabalho do poeta e crítico literário carioca Eucanaã Ferraz, por exemplo, que supõe uma surpreendente interface entre o uso da quadra nordestina por João Cabral de Melo Neto e o soneto por Vinicius (poder-se-ia pesquisar as afinidades eletivas com o trajeto poético de Drummond até chegar aos frutos maduros de Claro Enigma). Ao contrário do derramamento retórico da tradição parnasiana do bacharelismo pré-moderno brasileiro, assim como em Camões, e tanto quanto em João Cabral, o soneto em Vinicius é um exercício formal de contenção.

Vinícius estava longe de entronizar a métrica e a rima e acabar com o verso livre, cair no desatino de reeditar uma escolástica retórica. Cito em seguida uma autorreflexão de João Cabral de Melo Neto, como índice de uma possível serventia para o estudo pelo avesso também do caso de Vinicius: "Uma das coisas fatais da poesia foi o verso livre. No tempo em que você tinha que metrificar e rimar, você tinha que trabalhar seu texto [...]. No tempo da poesia metrificada e rimada, você tinha que trabalhar e tirava o inútil".

Veredas diferentes - o "coração" e a "pedra", na feliz expressão de Eucanaã -, Vinicius (Caminho para a distância, 1933; Forma e exegese, 1935; Ariana, a mulher, 1936) e João Cabral (Primeiros poemas, 1937-1940; Pedra do sono, 1941) apelaram a distintas tradições poéticas, mas a busca da metrificação, em ambos os casos, significou um movimento subjetivo de afastamento, uma negação tipicamente moderna como só nós, modernos, somos capazes de fazer: no primeiro caso, Vinicius, dar adeus à influência sufocante do transcendentalismo cristão; no segundo, João Cabral, conter, com a perícia de um engenheiro, em benefício de um projeto construtivista antilírico e antirretórico, os desvios oníricos surrealistas.

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Jaldes Reis de Meneses é professor dos Programas de Pós-Graduação em História e Serviço Social (UFPB).



Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

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