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Mais que uma filologia do Terceiro Reich

Marcos Aurélio da Silva - Abril 2010
 

Victor Klemperer. LTI: a linguagem do Terceiro Reich. Tradução, apresentação e notas de Miriam Bettina Paulina Oelsner. Rio de Janeiro: Contraponto, 2009. 424p.

Oportuna a publicação entre nós do livro de Victor Klemperer; oportuna não apenas por se tratar da primeira edição brasileira de obra que ganha o mundo em diferentes línguas desde a década de 1980, mas, como o disse o editor, César Benjamin, por tratar também a obra de nós mesmos. Com efeito, não é em vão lembrar que aqui pululam movimentos neonazistas e seu inventário de intolerâncias, como também, mais silenciosamente, mas não menos preocupante, vê-se o encantamento dos filhos de nossa classe média com leituras revisionistas do Holocausto. Aqui e ali, sem dúvida, ecos do país da delicadeza perdida, reflexos de uma integração alienada, conduzida sob regime autoritário, na sociedade de consumo de massas, mas também da insegurança mais recentemente trazida pela desordem neoliberal.

Daí que só as descrições de Klemperer, testadas no opressivo cotidiano nazista, já bastariam por si. Judeu assimilado, que se queria antes de tudo alemão e europeu, com claro sentimento de pertencer à humanidade - portanto, avesso ao sionismo -, conheceu ele as mais inacreditáveis perseguições. Foi impedido de ter rádio, ir ao cinema, ter em casa livros não judeus, perceber salário integral e até seguir com seu cargo de professor universitário. Infâmias que não raro chegavam através das mais ignóbeis justificativas, como a do impedimento para dirigir carros - porque ofenderia "a comunidade de trânsito alemã", pela impertinência de dirigir "nas estradas do Reich construídas pelos trabalhadores alemães" -, e eram aplicadas da maneira mais atroz. Não bastava, por exemplo, que judeus fossem impedidos de ter animais de estimação: seus gatos, cachorros e até canários tinham que ser sacrificados, uma das crueldades, aliás, não relatadas nos processos de Nuremberg, insiste Klemperer.

Como filólogo, o autor se ocupa em "captar as particularidades linguísticas de cada situação" protagonizada pelo regime. Um regime que altera o sentido das palavras, a frequência do seu uso, para, enfim, adaptar "a língua ao seu sistema terrível" e, com ela, conquistar "o meio de propaganda mais poderoso, ao mesmo tempo o mais público e o mais secreto". De fato, tudo era propaganda, discurso, ou, para dizer com mais rigor, retórica, esta expressão latina que até então os alemães desconheciam.

Assim é que conceitos como valentia, dedicação, abnegação e tenacidade se tornaram meios para treinar para o fanatismo. E as palavras "fanático", "fanatismo", tão recriminadas pelos iluministas em razão da raiz clerical, desapegada da razão, passaram a ser absurdamente utilizadas (não havia mais artistas "apaixonados", eles eram agora "fanáticos"). Assim, também, "visão de mundo" substitui "filosofia", e, se a palavra "sistema" é empregada com frequência, é porque a Linguagem do Terceiro Reich (Lingua Tertii Imperii ou LTI) já tratou de dar a ela "uma conotação nociva", pois o nacional-socialismo, "por instinto de preservação [...], precisa execrar o pensamento sistemático": quem "pensa não quer ser persuadido, mas convencido", algo um tanto difícil para uma linguagem que "só se prestava à invocação" e ao "fanatismo de massas".

Daí o prestígio dos chavões, a abundância dos superlativos ou mesmo a paradoxal parcimônia com que aparece o ponto de exclamação - pois tudo era apelo e exclamação, independentemente até deste sinal -, mas igualmente as aspas irônicas, muito apropriadas aos ataques sarcásticos às instituições do Estado, aos livros, aos jornais. Daí também não surpreender o reiterado desdém de Hitler, um autodidata quase sem instrução, que se expressava de forma desorganizada e sem ideias muito claras, lembra Klemperer, "pela intelligenz, pelas pessoas cultas, pelos professores"; não obstante, é claro, o "desejo de manter ao seu lado essa perigosa camada social", como também as pretensões eruditas da literatura adesista, com seus escritos em "linguagem empolada, misteriosa, cheia de preciosismo, esnobismo e pompa".

A despeito da valorização das idiossincrasias do Führer - que noutra parte é caracterizado como "um pequeno-burguês austríaco rancoroso e depravado" - e outros mais - Goebbels chega a ser ironizado como um "miolo mole e cara dura", tamanhas as mentiras de que faz uso no final do período -, a obra não se prende em explicações desta natureza. Na verdade, como que superando a oposição sujeito e estrutura, associa as ditas passagens a uma perspicaz interpretação histórico-sociológica do regime. Ademais, parece mesmo extrair desta interpretação uma determinada geografia humana, mais propriamente ancorada no campo das superestruturas.

Para Klemperer, o regime e todo o obscurantismo que o caracteriza têm suas raízes no romantismo alemão. Que se tratasse de um "romantismo estreito, limitado, pervertido", kitsch - numa referência à estilística -, como o vemos definir no capítulo 21, é coisa que a obra não se permite subscrever. Neste mesmo capítulo, onde são lembrados grandes nomes da cultura humanista de extração romântica - Goethe, Humboldt -, onde é destacada, mesmo no período de sua maior estreiteza, a ausência, nele, romantismo, de "qualquer sentimento de superioridade racial", como também nas conclusões do capítulo 29, Klemperer não se desfaz da ideia da "forte ligação entre nazismo e romantismo alemão", e "não somente o kitsch, mas também o autêntico, (que) domina a época".

Encontramos a raiz histórica deste vínculo na resistência à transformação capitalista impulsionada do exterior. Os "românticos alemães chegam como decorrência da agitação napoleônica", insiste Klemperer - o que, aliás, se repetiu, em terras francesas, todavia em um horizonte de política interna. Na França, com efeito, o discípulo Joseph Arthur de Gobineau se sentia "espoliado do que acreditava ser seu direito senhorial, sua nobreza herdada, suas potencialidades individuais", "culpava a dominação do dinheiro, da burguesia, da massa ascendente, que ele odiava, a massa que aspirava à igualdade de direitos [...]". Em contexto alemão, e mais especificamente nele, como não ver aí os elementos do que ficou consagrado como o caminho prussiano de emergência do capitalismo, marcado pela hegemonia das classes dominantes feudais, segundo a formulação de Lenin?

De fato, é este o processo que permite entender por que o romantismo alemão, nos seus inícios, "recusa tudo que é externo e glorifica tudo que é alemão, mas ainda sem qualquer sentimento de superioridade racial", como acima se disse. Já durante a Primeira Guerra Mundial, contudo, todo esse cadinho parece vir à tona. É quando se ouve falar de "superioridade cultural" e se olha "para a civilização ocidental com desprezo, como se fosse uma conquista superficial e menor", o que depois serviu aos nazistas com sua "história da civilização completamente falsificada", que fazia "com que o povo alemão se sentisse superior aos demais [...]".

(Embuste ao qual Klemperer opõe a leitura humanista de um Romain Rolland, "cujos relatos mostram duas Alemanhas e duas Franças"; ou a denúncia da leitura enviesada que os nazistas faziam do historiador romano Cornélio Tácito, cuja caracterização dos germanos insistiu, de fato, numa "tenacidade [...] muito forte", porém "até mesmo para coisas ruins".)

Não por acaso, a base social de Hitler repousa em um amplo sedimento social herdado desta revolução burguesa conduzida pelo alto. Ele "se une à plebe mais embrutecida, que em plena era da industrialização nem sequer faz parte do proletariado fabril, a uma parte da população rural e sobretudo à massa pequeno-burguesa apinhada nas grandes cidades". Em especial, a última, eivada do rancor que Klemperer encontrou no Führer, marca da insegurança que acompanha o tipo de transição capitalista que acima tratamos, faz sua aparição como um grupo "que não se detém em pensamentos sobre a classe operária nem em reflexões sobre a liberdade".

Ora, como não encontrar aí um ambiente perfeito para caracterizar comunistas, tanto quanto judeus, como sub-homens? Como não encontrar aí o voluntariado para as agressões físicas feitas por grupos de jovens contra comunistas, chamadas de "expedições punitivas"? Há outro motivo para Klemperer se deparar permanentemente, em pleno ambiente fabril, com a expressão Gefolgschaft, cujo sentido remetia os empregados à "antiga tradição alemã, tornando-os vassalos dos patrões, comprometidos com uma dívida diante dos senhores feudais, nobres cavaleiros"?

Já o campesinato rural, seduzido pela lei da propriedade hereditária - editada em 1933, ano em que Hitler se torna chanceler e triunfa na eleição plebiscitária de sua política econômica, bem como na eleição parlamentar, em que logrou impor uma lista única -, desde que provada a condição ariana, por certo, tornara-se instrumento eficaz da fórmula Blut und Boden (sangue e terra), tão cara ao regime. Nela, vê-se "a glorificação do camponês apegado à terra, avesso a inovações, (que) se manteve até o final", tudo muito a propósito da caracterização do espírito camponês "de maneira sentimentaloide e cheia de heroísmo", envolto "em uma aura de romantismo" - não obstante o flerte com o americanismo e a técnica, já que se "espera poder contar com os trabalhadores da indústria".

Com as mesmas cores obscurantistas, revelando claro "descompromisso com o futuro da ciência", anota Klemperer, vê-se a exaltação "de medicamentos naturais que não tenham sido processados nem por laboratórios nem por fábricas", já que "as ervas e as misturas de ervas extraídas de nossos prados e bosques têm uma conotação de algo familiar e autêntico", e o "vínculo com o sangue e a terra reforça a confiança em nossas plantas medicinais".

Isto posto, onde encontrar uma geografia humana? Não é certamente do arranjo geoeconômico resultante da expansão do Reich - com seu projeto de transformação das áreas anexadas em satélites exportadores de matérias-primas - que se trata. Como antes nos referimos, é uma geografia humana que aparece como superestrutura - o campo por excelência da LTI, como até aqui se viu -, sempre conduzida pelo espectro do romantismo, que está à mostra.

E aqui o ponto alto da obra não está em assinalar a alteração dos nomes das áreas anexadas, chamadas protetorados - a cidade polonesa de Lodz é transformada em Litzmannstadt; as regiões fronteiriças recebem a expressão Mark: para a Áustria, Ostmark; para a Holanda, Westmark -, o que deu lugar ao Atlas escolar alemão, um conjunto de mapas destinado às crianças para que conhecessem o "espaço vital da Grande Alemanha". Ou mesmo lembrar que, na própria Alemanha, também povoada por eslavos, "a geografia foi purificada até os mínimos detalhes", com a germanização dos nomes de aldeias e ruas. Antes, é no conceito de Europa, abertamente adulterado na LTI, que encontramos o que há de mais essencial na geografia retida por Klemperer.

Com efeito, remetendo ao conceito de Europa presente no pensamento francês, Klemperer lembra "que a essência da ideia de Europa está na criação de uma determinada cultura, uma determinada postura espiritual e uma determinada vontade". Daí Paul Valéry ter assinalado que "o conceito de espaço europeu é uma abstração" - a Europa sendo "todos os lugares nos quais a tríade Jerusalém, Atenas e Roma se fez presente", aí incluída até mesmo a América, "uma formidável criação da Europa", ou, com mais precisão, do "espírito europeu".

Ademais, indo além desta "coloração estritamente latina" e "sua orientação exclusivamente ocidental", e, não sem razão, tomado de entusiasmo pela vitória soviética frente ao Reich, acrescenta: "Desde que os textos de Tolstoi e de Dostoievski passaram a exercer influência na Europa [...], desde que o marxismo se tornou marxismo-leninismo, desde que ele se vinculou à técnica norte-americana, o centro de gravidade do pensamento europeu se deslocou para Moscou [...]".

A propósito, vale notar como aqui Klemperer não confunde a absorção da técnica norte-americana pelo Reich, voltada "à escravização da alma do povo alemão", com a mesma absorção feita pela Rússia soviética, destinada a "oferecer ao povo uma vida mais digna", reduzindo "a pressão do trabalho pesado e proporcionando a todos uma base física mais saudável", assim "contribuindo para sua elevação intelectual".

Ora, é diante de toda esta acumulação de formas que "o conceito de Europa sofre um estranho retrocesso". Para o nazismo, tudo o "que fosse europeu procedia dos nórdicos, ou dos germano-nórdicos, e todo elemento danoso ou ameaçador provinha da Síria e da Palestina". A Europa, enfim, deveria "ser entendida em um sentido exclusivamente espacial e material", designando um "território mais restrito [...]". Ela "termina onde começa a Rússia inimiga, cujo território, em grande parte, a Alemanha reivindica, considerando-o ilegítimo. Mas essa Europa também se separou da Grã-Bretanha, adotando em relação a ela uma atitude de defesa hostil". Entende-se aqui por que, na LTI, mais "frequente do que o substantivo ‘judeu’ é o adjetivo ‘judaico’". É ele "que reduz todos os adversários a um único inimigo: a visão do mundo judaico-marxista, a barbárie judaico-bolchevista, o sistema de exploração judaico-capitalista, o interesse dos grupos judaico-ingleses e judaico-americanos na destruição da Alemanha".

Para finalizar, Klemperer iniciou a obra destacando que mostrar "claramente o veneno da LTI e advertir as pessoas contra ele" era "mais do que uma mera mania de professor". O veneno, certamente, é mais que filológico e, retomando a observação do editor, não se restringe à Europa que conheceu a obra em 1947 (ademais não tão longínqua assim, se se observa a política do continente nos dias que correm). Almas como a nossa, atormentadas por um capitalismo que se deixou desregular amplamente e, após longo ciclo de crescimento, entrou em crise aberta - ainda mais quando capitalismo construído por interposta classe, muito à moda prussiana -, sem dificuldades vacilam diante de toda a acumulação de formas sociais que demarcam a vida democrática em seu sentido moderno.

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Marcos Aurélio da Silva é professor do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal de Santa Catarina.


Fonte: Diário Catarinense & Gramsci e o Brasil.

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